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Empresas de tecnologia prosperam na Ucrânia em meio a guerra com a Rússia

Conflito causa crises na indústria de grãos e no mercado de minérios, mas setor de tecnologia segue em desenvolvimento

Por David Seagal
Atualização:

Os aborrecimentos nunca acabaram para Yurii Adamchuk, executivo ucraniano que passa a maior parte do dia motivando 3 mil programadores de software a entregar projetos dentro do prazo, apesar dos obstáculos, dos horrores da guerra e de infinitas interrupções.

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Sentado em seu escritório, ele começa a trabalhar – e logo é interrompido. O ruído das sirenes de alerta para ataques aéreos preenche a ruas de sua cidade; e uma voz automatizada é ouvida, reverberando de alto-falantes, pedindo para que todos se dirijam ao abrigo antiaéreo mais próximo.

Adamchuk, diretor operacional, de 43 anos, desenvolvedor de software de Lviv, não demonstra preocupação. Ele se conforma em ter de deixar o edifício e se levanta, ostentando uma camisa Lacoste turquesa e um sorriso ressentido de um homem cansado da vida.

“Isso mata a produtividade”, afirma, enquanto recolhe uns poucos pertences e se encaminha para escada, juntamente com outros funcionários. “No início, isso acontecia duas vezes ao dia.”

Espaço co-working em Prompylad, centro de tecnologia com capacidade para hospedar 150 companhias, na Ucrânia, em imagem do dia 29 de junho deste ano. Apesar da guerra, setor de tecnologia do país continua prosperando Foto: Emile Ducke / NYT

Apesar desta e de muitas outras intrusões aterradoras, o setor de tecnologia prospera na Ucrânia, uma rara notícia boa em um país que passa por um profundo sofrimento econômico. Por meio de perturbações em cadeias de fornecimento, bloqueios portuários e até roubo, a Rússia asfixiou a indústria de grãos e o mercado de minérios, as maiores exportações. A expectativa é que a economia do país encolha 30% este ano, afirma o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, o que ajuda a aumentar a inflação global, a recessão e o desemprego.

Mas é impossível sitiar os 200 mil engenheiros de computação e programadores, que precisam apenas de laptop e conexão com a internet para ganhar a vida. Dados do Banco Nacional da Ucrânia mostram que, nos primeiros cinco meses do ano, as empresas de tecnologia receberam US$ 3,1 bilhões, de milhares de clientes, muitos deles listados na Fortune 500 – um salto em relação ao ano anterior, em que elas levantaram US$ 2,5 bilhões.

Mas, em vez de exultantes, executivos e trabalhadores do setor expressam temor a respeito de uma queda à espreita – e se preocupam com a possibilidade de ter poucos recursos para impedir a crise. Um problema prático: os homens ucranianos com idades entre 18 e 60 anos estão proibidos de deixar o país. Isso erradicou quase completamente a atenção que faz parte da relação com o cliente e acabou com as interações presenciais tão necessárias para conquistar novas empresas.

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Clientes – do Vale do Silício a Seul – fizeram afirmações do tipo “estamos do lado da Ucrânia”, durante videochamadas, e muitos parecem dispostos a apoiar o país. A preocupação é que, em algum momento, esse impulso colidirá com imperativos não sentimentais da administração de empresas. “Você tem apenas um período curto de empatia”, afirmou Adamchuk, antes de as sirenes começarem a soar. “Depois passa. Nesse ponto, a questão é: você é capaz ou não de entregar?”

A resposta carrega um peso desproporcional. “Essas empresas são pagas em dólares e euros. E, sem isso, não seremos capazes de pagar pelo combustível para o Exército ou por remédios, nossa moeda depreciará e haverá inflação”, afirmou Hlib Vishlinski, diretor do Centro para Estratégia Econômica, instituto de pesquisa de Kiev. “O setor de TI é crucial.”

Em maio, um grupo de executivos de empresas de TI se encontrou com a ministra para o Desenvolvimento Econômico e Comércio, Yulia Sviridenko, para pedir uma isenção para que seus diretores possam sair da Ucrânia e voltar. Ela pareceu receptiva, mas nenhuma ação foi adotada.

Konstantin Vasiuk, diretor da Associação de TI da Ucrânia, acha que os membros da entidade logo começarão a sofrer. “Seremos substituídos por outros provedores de TI”, disse. “Isso ocorrerá gradualmente, mas vai acontecer.”

Setor de tecnologia da Ucrânia prospera em meio a crises enfrentadas pela indústria de grãos e mineração Foto: Emile Ducke / NYT

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Conhecida como “celeiro do mundo”, a Ucrânia tem colocado há muito tempo o foco em engenharia de computação, o que começou na era soviética, quando um dos frontes da Guerra Fria envolvia superar os EUA em campos científicos. Desde a independência, em 1991, pais e educadores estimularam a aprendizagem do inglês, enquanto língua do comércio internacional.

Antes da invasão, o governo do presidente, Volodmir Zelenski, vendia a Ucrânia para governos e investidores como um novo lugar para investir. Zelenski criou o Ministério da Transformação Digital, que organizou turnês para apresentar o país como destino de empresas, onde os impostos eram baixos, a burocracia, mínima, e os talentos, abundantes. Empreendedores de criptomoedas foram seduzidos.

Comércio

O ministério afirma que a Ucrânia é lar de 5 mil empresas de tecnologia, que trabalham com comércio digital; desenvolvimento de games e aplicativos; softwares de criptomoedas; e melhorias na internet. A hora de trabalho é entre 10% e 20% mais barata do que em países concorrentes, como a Polônia, e a carteira ucraniana de clientes varia entre pequenas operações em busca de assistência terceirizada e empresas como Microsoft, Google e Samsung.

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Todas as empresas do leste do país têm histórias de guerra. No dia em que a invasão se iniciou, Oleg Cherniak, diretor de desenvolvimento de negócios da CHI Software, em Kharkiv, recebeu um telefonema de um amigo que servia ao Exército e pediu que ele lhe trouxesse uma pá e um machado, para ajudar a reconstruir uma fortificação. Logo depois que ele chegou ao local, um caça russo soltou bombas que explodiram a 90 metros deles. “Passamos algum tempo deitados com a cara no chão”, afirmou Cherniak. “Naquele momento, percebi que eu tinha de deixar a cidade com minha família.”

Ele levou até a fronteira polonesa sua mulher e seu filho, que agora vivem em Barcelona, juntamente com o bebê que nasceu há poucas semanas. Cerca de 470 funcionários da CHI também deixaram Kharkiv e se instalaram em Lviv, juntamente com Cherniak.

Contratos

As empresas de tecnologia mantiveram 95% do volume de seus contratos, constatou a Associação de TI da Ucrânia. Adamchuk, da Avenga, lembrou-se de apenas um cliente que encerrou os negócios com sua empresa, citando um protocolo que o impedia de contratar fornecedores em zonas de conflito.

Outros clientes dizem que, por mais que queiram apoiar a Ucrânia e ajudar sua economia, mas a guerra os faz pensar duas vezes. Um problema tem sido a mão de obra: aproximadamente 5% dos trabalhadores do setor de tecnologia se juntaram às Forças Armadas.

“Meu fornecedor ucraniano está substituindo alguns membros de sua equipe por estagiários, e isso nem sempre passa despercebido”, afirmou Nate Moshkovich, da ClearLine Mobile, empresa de Los Angeles que trabalha com uma desenvolvedora de software, a Allmatics, sediada em Kiev. “Eu me preocupo com essas pessoas, mas meu projeto precisava avançar com mais rapidez. Então, aumentei minha equipe contratando na Índia.”

O médico John Salmon, patologista de Lynchburg, nos EUA, não acreditou que a Cleveroad, sua fornecedora ucraniana de serviços de TI, seria capaz de manter o ritmo de trabalho afinando um aplicativo de rede social chamado Delta Sport. Quando veio a invasão, ele não pôde deixar de considerar a contratação de um fornecedor em alguma parte menos volátil do mundo.

“Acho que eu seria um mau empresário se não tivesse considerado isso”, afirmou. “Tenho três colaboradores nos EUA, possuo patentes, e estamos em busca de investidores. Tenho família e minha responsabilidade é ser inteligente o suficiente para mantê-la, o que não seria possível se não calculasse bem esse projeto e ele acabasse.”

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Produção

Em 25 de fevereiro, um dia depois de a Rússia invadir a Ucrânia, Salmon telefonou para o gerente do projeto, que lhe tranquilizou – e o trabalho continuou a fluir, com apenas uma exceção. Em uma noite de sexta-feira, no início de abril, poucas semanas antes de lançar o aplicativo no Google Play e na Apple Store, o Delta Sport não estava carregando corretamente em testes beta realizados em telefones Android. Uma mensagem mandada para a Cleveroad ficou sem resposta por 48 horas, longe do atendimento quase instantâneo que é a norma da prestação do serviço. Na segunda-feira, Salmon soube por quê.

Grande parte da equipe tinha passado o fim de semana abrigada em porões para se proteger de mísseis russos. Exceto por esse percalço, a empresa aumentou sua velocidade. “Eles ficaram realmente mais velozes”, afirmou Salmon. “Aprovei cada linha da programação conforme elas eram escritas, então pude perceber em tempo real o quão rapidamente eles estão trabalhando.”

Recrutar novos clientes provou-se mais difícil. Darina Hameliak, que dá dicas de negócios na Avenga, certa vez desligou subitamente um telefonema de apresentação na casa de seus pais, em Irpin, porque escutou mísseis explodindo.

Ela havia sido rejeitada por alguns clientes, e outros lhe explicaram que se preocupavam com a possibilidade de seus prazos não serem atendidos, dada a situação precária das cidades ucranianas. “O que é frustrante é ver clientes trabalhando com empresas russas sem pensar em mudar”, afirmou Hameliak. “Tento ser educada.”

Corrupção

No ano passado, o Índice de Percepção de Corrupção, publicado pela ONG Transparência Internacional, colocou a Ucrânia como o segundo país mais corrupto na Europa, atrás da Rússia. Por anos, um pequeno grupo de oligarcas foi proprietário de uma enorme fatia da economia, e propinas eram comuns.

Uma economia nas sombras e transações não registradas erodem há muito tempo a base tributária do país. Quatro anos atrás, o Instituto Internacional de Sociologia, de Kiev, estimou que 47% do PIB ucraniano era invisível para o governo.

A situação está melhorando, afirmam muitos executivos, à medida que mais empresas competem por contratos na economia internacional, onde a integridade é mais valorizada. Mas jovens empreendedores entendem que, antes de a guerra transformar a Ucrânia em um símbolo de resistência, o país tinha um problema de imagem. E não havia sentido esperar que o governo fosse repará-lo. As pessoas vivem do que ganham trabalhando e não se aposentam, a alternativa a isso é viver na miséria.

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Viabilidade

Os funcionários entenderam que as empresas corriam risco de perder clientes e desapareceriam se não provassem que eram viáveis como antes da invasão. Além disso, colocar o foco no trabalho é uma boa maneira para conseguir tirar a atenção dos horrores que transcorrem no país.

“Sentimos muitas emoções, e a maioria delas é bem negativa”, afirmou Illia Shevchenko, que trabalha como gerente na EPAM Systems, empresa de design de produtos digitais sediada na Pensilvânia que possui escritórios na Ucrânia. “A melhor maneira de tirar a cabeça dessas emoções é trabalhando.”

Shevchenko conversou com a reportagem por chamada de vídeo, a partir de um pequeno quarto em um apartamento de Kremenchuk, para onde se mudou com a mulher e os dois filhos, quando Kharkiv foi atacada. “Levou dois dias para conseguirmos conexão estável.” De sua tela, ele supervisiona 140 engenheiros que trabalham em tecnologia de games e projetos em JavaScript.

Seja qual for a razão – medo de penúria na velhice ou uma ética de trabalho “codificada no DNA nacional”, como define um gerente da Cleveroad –, a Ucrânia parece transbordar impulso para empreendedorismo.

Um bom lugar para observar esse fenômeno é no Promprylad, centro de inovação de 3,7 mil metros quadrados que está sendo construído em Ivano-Frankivsk, cidade de 240 mil habitantes, a 130 quilômetros de Lviv. A estrutura é de uma antiga fábrica soviética e 15% das instalações foram reformadas e abrigam de tudo: uma galeria de arte, espaço de coworking, estúdio de dança, restaurantes, cafés e dezenas de outros empreendimentos.

Um deles é o ateliê da Anoeses, marca de lingeries eróticas que tem a prática do bondage como tema – calcinhas de couro, mordaças, coleiras, algemas, máscaras e aros. A cantora Madonna é fã da marca e vestiu um corset da Anoeses em um post de Instagram, em março, durante um show. “Tudo começou quando a Lourdes, filha da Madonna, usou um dos nossos corsets em um evento”, afirmou a diretora de marketing da empresa, Olia Tretiak.

A Anoeses não ganhou com o interesse de Madonna, porque teve de desativar seu website, para que todos os seus 30 funcionários pudessem fugir de Kiev. “Estávamos presos em abrigos antibombas”, afirmou Tretiak.

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Quando sua construção terminar, no fim de 2023, o Promprylad abrigará 150 empresas, cerca de uma dúzia delas de tecnologia. O plano presume que esse setor continuará vibrante, o que não passa de uma esperança quando falamos com pessoas como Cherniak, da CHI Software. Ele acha que sua empresa está prestes a perder vários contratos novos no futuro. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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