O presidente Donald Trump chocou o mundo ao propor que os Estados Unidos assumissem o controle da Faixa de Gaza. O plano que vendeu como uma reconstrução do enclave arrasado pela guerra não inclui os palestinos. Toda a população, estimada em 2 milhões de pessoas, seria retirada do seu território.
A proposta, chamada pela Casa Branca de “fora da caixa”, foi prontamente rechaçada até mesmo por aliados dos Estados Unidos. De tão impensável, muitos se perguntaram se Trump estava realmente falando sério. Essa dúvida paira com certa frequência sobre os anúncios do republicano, um adepto da “Teoria do Louco”.
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Desde que assumiu a Casa Branca, ele assinou uma série de decretos que vão das tarifas à imigração e o cortes de gastos, passando pelo fim das políticas de inclusão e pelo bloqueio de ajuda internacional. Se levadas a cabo suas políticas representam um desafio para economia americana e para a imagem dos Estados Unidos no mundo. Seriam um presente para a China, que pode se tornar um parceiro mais atraente em contrapeso aos EUA no restante do mundo.

Saiba o que dizem os analistas sobre as políticas de Donald Trump e suas consequências
Trump está falando sério sobre Gaza?
“É a própria extravagância do plano de Trump que sinalizou para alguns que não era para ser levado ao pé da letra”, escreveu Patrick Kingsley. “Assim como Trump frequentemente faz ameaças ousadas em outras áreas que ele acaba não concretizando, alguns viram sua jogada em Gaza como uma tática de negociação destinada a forçar concessões tanto do Hamas quanto dos líderes árabes”.
Os riscos do plano para Gaza
O plano pode render pontos para o primeiro-ministro de Israel, Binyamin a Netanyahu, especialmente com a extrema direita que está insatisfeita com o cessar-fogo em Gaza, mas seria uma fracasso, observa o colunista do Estadão, Filipe Figueiredo. Ainda assim, ele alerta que “não é prudente achar que as declarações de Trump são bravatas”, lembrando das nomeações pró-Israel feitas por Donald Trump.
“Além da ótica legal sobre uma limpeza étnica, da perspectiva realista de equilíbrio de poder e da geopolítica, as relações com Israel são uma das mais ideológicas no mundo hoje. Resta desejar que o realismo se imponha. Forçar o deslocamento de mais de um milhão de palestinos potencialmente cria um sismo para abalar toda a região e destruir o pouco que ainda resta da paz entre Israel e seus vizinhos”.
Trump sem freios e o plano improvável para Gaza
O plano — prontamente rechaçado até mesmo por aliados — se insere na estratégia que vai além da Faixa de Gaza. “Em seu segundo mandato na Casa Branca, Trump está promovendo ideias cada vez mais ousadas sobre redesenhar o mapa do mundo de acordo com a tradição do imperialismo do século XIX”, aponta Peter Baker.
“Primeiro foi a compra da Groenlândia, depois a anexação do Canadá, a reivindicação do Canal do Panamá e a mudança do nome do Golfo do México. E agora ele pretende assumir o controle de uma zona de guerra devastada no Oriente Médio que nenhum outro presidente americano gostaria de ter.
Não importa que ele não tenha conseguido citar nenhuma autoridade legal que permitisse aos Estados Unidos afirmar unilateralmente o controle sobre o território de outra pessoa ou que a remoção forçada de toda uma população fosse uma violação da lei internacional. Não importa que o reassentamento de 2 milhões de palestinos seria um desafio logístico e financeiro gigantesco, sem falar que seria politicamente explosivo. Não importa o fato de que isso certamente exigiria muitos milhares de soldados dos EUA e possivelmente provocaria um conflito mais violento”.
Planos parecem desconsiderar impactos de longo prazo
Diante da torrente de ordens e tarifas, Thomas Friedman questiona: “Estamos testemunhando o desenrolar de um plano testado e simulado por meses, com todas as suas implicações totalmente compreendidas?”
“Ou estamos vendo o desenrolar de anotações tomadas num guardanapo de papel do bar de Mar-a-Lago, com algumas ideias cruas esboçadas e, em seguida, uma disputa caótica entre Trump e seus assessores e lobistas sobre que indústrias serão atingidas ou poupadas?
Fico com a hipótese do guardanapo”, afirma ao alertar que as medidas anunciadas por Donald Trump terão impacto sobre a indústria dos EUA. E que a China sai é a grande beneficiada pela disputa política americana.
“Como as empresas americanas acompanham o ritmo da China nas indústrias do futuro: inteligência artificial, chips lógicos avançados, veículos elétricos, tecnologia limpa e carros autônomos, quando essas empresas são constantemente chicoteadas entre presidentes democratas e republicanos em um mundo no qual têm de fazer apostas multibilionárias com cinco anos de antecedência.
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E elas têm de fazer essas apostas ao mesmo tempo que competem com a China, cujo governo desperta todos os dias e pergunta aos empresários: como posso ajudá-los? Vamos vislumbrar juntos como venceremos globalmente a longo prazo?”
Trump destrói influência global que os EUA levarão décadas para construir
E não é só a economia americana que sentirá o baque. A imagem dos Estados Unidos no mundo e o soft power que o país levou décadas para acumular são abalados pela guerra tarifária, descrita em editorial do Wall Street Journal como a “mais idiota da história”; o bloqueio da ajuda a outros países; e a decisão de enviar milhares de refugiados de volta para Venezuela. “Cada uma dessas jogadas representa outro prego no caixão do poder brando dos EUA”, escreve Max Boot.
“É impressionante ver quanto dano Trump causou ao poder brando dos EUA em apenas duas semanas, e doloroso imaginar o quanto mais ele poderia fazer nas próximas 206 semanas. Quaisquer pequenas concessões que Trump possa eventualmente extorquir de aliados dos EUA, como México ou Canadá, com suas demandas pesadas, não valem o dano aos relacionamentos de longo prazo dos Estados Unidos com esses países.”
Nesse cenário, afirma Boot, a China pode se tornar um parceiro mais atraente e um contrapeso aos EUA para muitos países ao redor do mundo. “Longe de tornar os EUA grandes novamente, essa erosão do poder brando prejudicará a segurança econômica e nacional dos Estados Unidos por anos e anos.”
Loucura, mas com método
O colunista do Estadão, Rodrigo da Silva, relembrou em sua coluna do dia 29 que foi outro presidente americano, Richard Nixon, quem desenvolveu essa estratégia. Ele próprio chamava de Madman theory – a Teoria do Louco. Nixon adorava uma declaração pública irracional, eventualmente insana, previamente calculada para provocar dúvida e medo nos seus alvos.
“Donald Trump nunca negou que Richard Nixon foi uma grande referência na sua formação. Trump desenvolveu o seu estilo de negociação agressivo nos anos 1970, no auge da Guerra Fria, com a ajuda do advogado e amigo, Roy Cohn, conselheiro informal de Nixon. Ele próprio admite que recorre à Teoria do Louco para alcançar ganhos políticos e econômicos”.
Corte de ajuda internacional só prejudica aos EUA
Na mesma linha, a The Economist alertou o bloqueio de ajuda humanitária para outros países cai como um presente para a China, que compete com os EUA por supremacia em poder brando. E destacou que a medida contraria os interesses americanos.
“Arriscar uma fuga em massa de jihadistas torna os EUA menos seguros. Ocasionar miséria afasta amigos e aliados em potencial, o que torna os EUA mais fracos. E um mundo mais pobre acabará tornando também os EUA mais pobres. A generosidade de Washington não é mera caridade. As ajudas externas que criam um mundo mais estável e mais rico atendem ao interesse maior dos EUA. Podem chamá-lo de EUA em Primeiro Lugar, se preferirem”.