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Europa se une na Otan diante da ambição imperial de Putin; leia análise

Invasão da Ucrânia provocou o renascimento de uma aliança militar que buscava uma razão para existir

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Por Roger Cohen

THE NEW YORK TIMES - As decisões tomadas pela Finlândia e a Suécia de abandonar a posição de neutralidade que adotaram por décadas e solicitar a adesão à Otan é o mais forte indicativo até aqui de que uma profunda mudança ocorreu na Europa em face ao agressivo projeto imperial da Rússia.

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Os dois Estados escandinavos deixaram claro efetivamente que esperam uma ameaça duradoura por parte da Rússia do presidente Vladimir Putin, que não se deixarão intimidar por isso e que depois da carnificina russa em Bucha, na Ucrânia, não há lugar para neutralidades. As declarações da Finlândia e da Suécia atestam a determinação do Ocidente.

“O não alinhamento militar serviu bem à Suécia, mas nossa conclusão é que isso não nos servirá igualmente bem no futuro”, afirmou no domingo a primeira-ministra sueca, Magdalena Andersson. “Não é uma decisão fácil.”

A primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, explica, em uma entrevista coletiva, a decisão de seu país de pedir a adesão à Otan, em 16 de maio  Foto: Henrik Montgomery/TT News Agency via AP

Em razão de as forças militares finlandesas e suecas já estarem bem integradas à Otan, razão pela qual o processo de adesão poderá transcorrer rapidamente, o impacto imediato da mudança de rumo estratégico diante da invasão russa à Ucrânia será mais política do que prática.

Trata-se de uma nova Europa, na qual não há mais meio-termo. Os países ou são protegidos pela Otan ou estarão sozinhos diante de uma Rússia governada por um homem determinado a garantir a proeminência de seu país na arena internacional por meio da força. Para a Suécia e especialmente para a Finlândia, com sua fronteira de 1,3 mil quilômetros com a Rússia, a decisão de Putin de invadir um vizinho não pôde ser ignorada.

Suecos e finlandeses podem não estar sós. A Alemanha, uma nação geralmente pacífica desde que emergiu da ruína de 1945, passou a investir massivamente em suas Forças Armadas, ao mesmo tempo em que tenta desmamar da dependência da energia da Rússia que havia julgado ser uma parceira de negócios não tanto inócua, mas ao menos confiável.

“A ampliação da Otan jamais esteve entre as causas da decisão de Putin de invadir a Ucrânia, mas é certamente uma de suas consequências”, afirmou Nathalie Tocci, diretora do Instituto para Assuntos Internacionais, em Roma. “Suécia e Finlândia passaram a considerar a Rússia um país revanchista e revisionista, de uma maneira muito mais perigosa do durante a última parte da Guerra Fria.”

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Suécia e Finlândia julgaram que a neutralidade atendia seu interesse em face à ameaça soviética; e no caso sueco, essa posição já era adotada havia séculos. Os países não mudaram de posição, apesar de terem aderido à União Europeia, nas mais de três décadas que se passaram desde o fim da Guerra Fria.

A mudança de sentimento em ambos os países nos meses recentes foi dramática, o que demonstra a medida em que a determinação de Putin de afastar a Otan e enfraquecer seu apoio produziu, na realidade, o efeito oposto: o renascimento de uma aliança que vagueou ao longo de toda uma geração em busca de uma razão convincente para existir.

Enquanto não mais de um quarto das populações sueca e finlandesa apoiavam a adesão de seus países à Otan até o ano passado, este índice cresceu acentuadamente hoje — atingindo 76% em uma pesquisa recente realizada na Finlândia. O governante Partido Operário Social-Democrata da Suécia, maior agremiação política do país e antigo bastião do não alinhamento, passou a defender a adesão à Otan em uma reviravolta extraordinária.

“Putin subiu numa árvore e não sabe como descer”, afirmou Nicole Bacharan, analista francesa de política externa. “Agora, ele encarará uma Otan mais forte, maior e mais determinada.”

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O Artigo 3.º do tratado fundador da Otan afirma que os membros da aliança devem “manter e desenvolver sua capacidade individual e coletiva de resistir a um ataque armado” por meio de “contínua e efetiva ajuda individual e mútua”. No caso de Suécia e Finlândia, essas capacidades já foram amplamente desenvolvidas por meio de uma cooperação próxima com a Otan.

Carl Bildt, ex-primeiro-ministro e ex-chanceler da Suécia, afirmou: “Estávamos planando na direção de uma relação mais próxima com a Otan. Mas o 24 de Fevereiro (data em que a Rússia iniciou a invasão à Ucrânia) deu combustível e acionou uma turbina para este caminho em particular”.

Ele acrescentou: “Nossa decisão reflete a visão de que a Rússia seguirá um lugar complicado por muito tempo e de que a guerra na Ucrânia será consideravelmente longa, com uma liderança errática e altamente revisionista no Kremlin no futuro próximo”.

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Questionado sobre se teme a possibilidade de uma retaliação da Rússia, Bildt afirmou: “Com a Rússia nunca dá pra saber, mas confiamos bastante em nossas capacidades”.

A percepção de que a guerra na Ucrânia pode vir a ser um conflito longo é neste momento amplamente compartilhada na Europa. Putin não se opôs apenas ao seu vizinho, ele se opôs ao Ocidente e aos EUA retratados como um “império de mentiras”.

Levou cerca de 20 anos, a partir do Tratado de Versalhes, de 1919, para a Alemanha responder à humilhação sentida, acionando a máquina de guerra do Terceiro Reich através da fronteira de um vizinho e dando início à 2.ª Guerra. Levou cerca de 30 anos para o inquietante ressentimento de Putin em relação à humilhação sentida em relação à queda do império soviético levar à invasão em escala total da Ucrânia.

O presidente russo não parece disposto a mudar de rumo, mesmo que sua guerra tenha ido mal para ele até aqui.

Na prática, Finlândia e Suécia convivem há muito tempo com as armas nucleares russas instaladas por perto, em Kaliningrado, o enclave russo espremido entre Polônia e Lituânia na costa do Báltico.

“Esses países estão acostumados com russos violando seus espaços aéreos, eles conhecem os riscos existentes”, afirmou Tocci. “Mas os ganhos em segurança com a Otan são incomparavelmente maiores do que o risco engendrado.”

De qualquer modo, Putin aludiu mais de uma vez para o sofisticado arsenal nuclear da Rússia e sugeriu que não hesitará em usá-lo caso seja provocado. A ameaça existe não apenas para Finlândia e Suécia, por abandonar seu não alinhamento militar, mas para toda a Europa e além.

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Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante evento com líderes aliados em Moscou, em 16 de maio  Foto: Alexander Nemenove/EFE

Tocci conversou com a reportagem durante uma visita à Estônia, um dos três Estados bálticos, que integraram a União Soviética e posteriormente aderiram à Otan, em 2004. “Há uma satisfação generalizada em razão do Mar Báltico se tornar agora um mar da Otan, e os estonianos consideram as decisões dos finlandeses e dos suecos uma validação”, afirmou ela.

Por muito tempo, mesmo nas vésperas da invasão russa, a Europa esteve dividida. Países mais próximos às fronteiras da Rússia — como os Estados bálticos e a Polônia — consideravam seriamente a ameaça russa em razão de sua amarga experiência histórica, enquanto países mais ao oeste, incluindo Alemanha e França, preferiam aproveitar-se dos dividendos da paz ocasionada pelo fim da Guerra Fria a afrontar seriamente as ambições de Putin.

Essas ilusões persistiram mesmo após Putin anexar a Crimeia, em 2014, atiçar a guerra no Donbas, no leste da Ucrânia, a partir daquele mesmo ano e usar sua força militar para definir o conflito na Síria, usando métodos brutais aperfeiçoados na Chechênia muitos anos antes — e evidentes na Ucrânia desde fevereiro.

No fim, os países geograficamente mais próximos à Rússia — e ameaçados mais imediatamente por ela — estavam certos. Finlândia e Suécia testemunharam isso de perto.

A Europa está neste momento quase totalmente unida na determinação de resistir a Putin e garantir que ele não vença a guerra na Ucrânia. Os Estados Unidos, que tinham suas próprias ilusões a respeito da Rússia, recolocaram o foco sobre a Europa e estão determinados não apenas em salvar a Ucrânia, mas em enfraquecer a Rússia. E não se trata de ambições a curto prazo.

“A Europa mudou”, afirmou Bildt. “Teremos uma Otan mais forte, com gastos de defesa em alta, mais coesão política e um senso de propósito. Teremos também uma União Europeia mais forte, com mais complementaridade entre o bloco e a Otan.”

A Europa, é evidente, também sofrerá economicamente e de outras maneiras, como sofreria em razão de qualquer guerra longa. E os países no fogo cruzado — essencialmente Moldávia e Geórgia, atolados em uma terra de ninguém às margens da Rússia e sem proteção da Otan — enfrentarão desafios traiçoeiros.

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Finlândia e Suécia aprenderam uma lição central com a Ucrânia. Depois do anúncio da Otan, de 2008, de que Ucrânia e Geórgia se tornariam membros da aliança, decisão tomada com escassa consideração a respeito de como ou quando chegar ao objetivo, o espinhoso tema da adesão da Ucrânia foi deixado à deriva por líderes ocidentais que não queriam provocar Putin ainda mais.

Isso não fez nenhuma diferença no cálculo de Putin. Ele invadiu a Ucrânia mesmo assim, inventando uma ameaça nazista e argumentando que o estatuto de Estado da Ucrânia é um mito. Suécia e Finlândia não se deixariam acometer pelo mesmo destino em razão de algum comedimento equivocado. “Elas aprenderam a lição”, afirmou Tocci.

A dúvida sobre a maneira como Putin descerá de sua árvore permanece. Ele qualificou a decisão da Finlândia como “um erro” e insistiu que não existe nenhuma ameaça da Rússia contra o país. Ele também cortou o fornecimento da eletricidade produzida na Rússia para os finlandeses. Putin não dá nenhum sinal de que vá abandonar sua convicção de que a força eventualmente garantirá à Rússia seus objetivos estratégicos.

“Mesmo se Putin perceber que cometeu um erro, duvido que ele admitirá que errou”, afirmou Bildt. “As consequências disso seriam grandes demais. Este erro não foi nada pequeno. Foi um erro estratégico catastrófico, um erro de primeira ordem.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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