Foto de ‘Menina do Napalm’ no Vietnã quase não foi publicada

Editor da Associated Press tentou barrar a publicação alegando ‘nu frontal’ da criança, mas imagem estampou os jornais do mundo inteiro e acentuou protestos pacifistas

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Por Cristiano Dias
Atualização:

Era quase meio-dia e Nick Ut achava que o trabalho estava no fim. Ele já havia fotografado gente morrendo de tudo que é jeito e decidiu voltar para a estrada onde estavam os outros fotógrafos. No caminho, escutou um barulho de avião. Era um A-1 Skyraider, que mergulhou carregado de napalm sobre a aldeia de Trang Bang.

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Não havia ninguém no lugar. Ou pelo menos era o que todo mundo acreditava. Por isso, a surpresa quando crianças começaram a aparecer correndo, fugindo da fumaça e do fogo. Uma senhora surgiu com um bebê de 1 ano no colo, pedindo que ajudassem o seu neto.

Imediatamente, formou-se um comitê de fotojornalistas para registrar o drama. Ut assistiu à morte do garoto na lente de sua Leica. Antes de recolher a câmera, notou no canto do visor a chegada de uma menina nua com os braços abertos. Correu na direção da garotinha e liquidou seu oitavo rolo de filme.

Fotógrafo vietinamita Nick Ut mostra foto da 'Menina do Napalm' ao papa Francisco, no Vaticano, em 11 de maio, acompanhado por Kim Phuc Phan Thi, a garota na foto. Foto: Vatican Media Handout via EFE

Era 8 de junho de 1972. Algumas horas depois, sua foto seria o ícone da Guerra do Vietnã. Depois de revelar os negativos e de fazer cópias 5×7 polegadas da imagem, a foto de Ut quase morreu nas mãos de Carl Robinson, um dos editores da Associated Press. “Lamento, mas acho que não poderemos usá-la”, disse Robinson, citando o código de ética da empresa.

A razão: o nu frontal da criança. Mas, antes que a imagem fosse arquivada, seu chefe Horst Faas e o repórter Peter Arnett chegaram do almoço.

- Quem fez esta foto?, gritou Faas

- Foi o Nick, respondeu um editor.

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- O que ela ainda está fazendo aqui?, perguntou Faas. Transmitam já para Nova York.

No dia seguinte, a imagem da garotinha nua, ardendo em napalm, estampou os jornais do mundo inteiro. Os protestos pacifistas se intensificaram: Londres, Paris, Tóquio, Washington. Talvez não tenha mudado de fato os rumos da guerra. Afinal, desde 1968, a maioria dos americanos já estava insatisfeita com o conflito.

Foto de Nick Ut, tirada em 08 de junho de 1972, virou ícone antiguerra. Foto: Nick Ut/ AP

Em novembro de 1971, o presidente Richard Nixon anunciou o fim das operações terrestres no Vietnã do Sul. No momento da foto, sete meses depois, quase todas as unidades de combate dos EUA já haviam deixado a região. Mas a imagem é tão forte que até hoje muitos veteranos agradecem a Nick Ut por terem saído daquele inferno mais cedo.

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Se não alterou o curso da guerra, a foto mudou a vida de Ut. Ele tinha 21 anos. Aos 22, ganhou o Prêmio Pulitzer. Naquela manhã, após registrar a última imagem, viu as costas descamadas da garota - o napalm adere à pele, queima os músculos e funde os ossos - e chorou. Correu na direção da menina, pegou-a nos braços e levou-a até o carro da Associated Press. Duvidou que ela chegasse viva ao hospital de Cu Chi.

Durante o trajeto, Kim Phuc Phan Thi, de 9 anos, balbuciava: “Estou morrendo. Estou morrendo”. Segundo Ut, o hospital era uma pocilga, com corpos espalhados, gente ferida e moribunda por todos os lados. Na entrada, pediu que um médico cuidasse da criança. “Não podemos fazer nada”, foi a resposta.

Irritado, ele tirou do bolso o crachá da Associated Press, fez ameaças que não podia cumprir, até que a levassem dali. Dias depois, Christopher Wain, correspondente da TV britânica ITN, buscou informações sobre Kim no hospital. “Perguntei como ela estava e a enfermeira foi seca: ‘Deve morrer amanhã ou depois de amanhã’”.

Mas Kim sobreviveu. Foi transferida para Saigon, passou um ano internada e voltou para Trang Bang. Virou estudante de medicina e recebeu autorização para completar o curso em Cuba, onde começou a namorar um colega vietnamita.

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Achou que a família nunca permitiria o casamento, porque ele era do Vietnã do Norte. Finalmente, obteve permissão para passar a lua de mel em Moscou e, na volta, durante escala no Canadá, pediu asilo - e recebeu. Hoje, vive perto de Toronto com a família, o marido e dois filhos. Nick Ut mora em Los Angeles e ainda trabalha para a Associated Press. Até hoje, o caminho dos dois se cruza de vez em quando.

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