Guerra da Rússia contra a Ucrânia poderá aumentar o interesse dos alemães no serviço militar

Jovem de 19 anos diz estar pronta para lutar por seu país, rejeitando antigos pressupostos a respeito de culpa e militarismo

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Por Isaac Stanley-Becker
8 min de leitura

THE WASHINGTON POST - Quando era criança, Maya Zakrajsek levou a sério palavras que lhe foram ensinadas, um mantra para a Alemanha moderna: “Nunca mais”.

As palavras a tornaram cética a respeito dos militares e grata por crescer numa nação em paz.

Mas a invasão da Rússia à Ucrânia fez com que Zakrajsek, de 19 anos, repensasse sua convicção. Ela se aferra firmemente à promessa de que a Alemanha jamais voltará a agir como um país agressor nem cometerá outro genocídio. Mas jamais se preparar para a guerra nem participar de um conflito? Subitamente isso pareceu ingenuidade. A guerra entre nações está de volta à Europa — “algo”, disse ela, “que nunca pensamos ser possível”.

Após a invasão, o chanceler alemão, Olaf Scholz, declarou que houve uma “Zeitenwende”, uma mudança de era. Alemães estão apoiando amplamente planos para uma reforma dramática em relação à maneira que seu país trata segurança e defesa. A relação dos alemães com as Forças Armadas poderia mudar ainda mais se a resposta de Zakrajsek à guerra for compartilhada por outros jovens. Um frenesi de questionamentos ao Ministério da Defesa, nas semanas recentes, sugere que essa hipótese é possível.

A jovem de 19 anos considera se alistar para o serviço militar desde que recebeu materiais promocionais pelo correio, anos atrás. Mas ela disse que se decidiu após a invasão russa. Agora, depois de terminar o ensino médio, ela pretende se voluntariar para um ano de serviço.

Soldado ucraniano assume posição no vilarejo de Barvinkove, na região de Kharkiv Foto: MARKO DJURICA

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Ela afirmou que espera obter treinamento básico de infantaria, aprender a lançar mísseis para a Força Aérea e servir como reservista pelo resto da vida. Se conseguir convencer sua mãe, porém, ela poderá considerar seguir carreira nas Forças Armadas (seus outros interesses são veterinária e medicina).

“Espero que nenhuma guerra atinja a Alemanha, mas quero estar preparada para me defender e lutar pelo meu país se isso acontecer”, disse Zakrajsek enquanto escovava seu cavalo, Columbo, num estábulo de uma cidade do sul alemão. Daqui, ela consegue ouvir o ruído dos helicópteros que se aproximam da Base Aérea de Ramstein, o posto avançado dos Estados Unidos nas colinas da Floresta do Palatinado.

O posicionamento patriótico de Zakrajsek é lugar-comum em nações que veneram os militares. Na Alemanha, esse posicionamento é peculiar. Depois da reunificação do país, em 1990, alemães que ainda buscavam antídotos para os crimes nazistas louvaram a chance de diminuir suas Forças Armadas, as Bundeswehr.

De uma força de combate com mais de 500 mil soldados no fim da Guerra Fria, quando a Alemanha Ocidental era a linha de frente da Otan, seus números diminuíram para atuais 184 mil membros, com uma mudança especialmente marcante em 2011, quando o alistamento obrigatório foi extinto. Missões internacionais foram priorizadas em detrimento da defesa de fronteiras nacionais ou europeias. Equipamentos básicos, de botas a coletes de proteção, caíram em estado de abandono.

As Forças Armadas são algo tão distante da sociedade civil — exceto quando são acionadas para respostas a desastres ou para administrar esforços como centros de vacinação contra o coronavírus — que uma iniciativa de 2019 que permitiria aos militares acessar o transporte ferroviário sem ter de pagar pelas passagens atraiu críticas, por tornar o traje militar mais proeminente na vida cotidiana.

Há relatos de pessoas que cuspiram em soldados e os xingaram de nazistas, uma acusação amplificada pela vergonha. Simpatias extremistas ficaram tão pronunciadas num batalhão de elite que a unidade foi extinta em 2020.

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Mas a invasão russa marcou uma mudança profunda. O chanceler alemão, social-democrata, prometeu €100 bilhões para reconstruir as Forças Armadas de seu país. Esse compromisso foi elogiado pelas nações aliadas, que querem uma Alemanha rearmada ajudando a enfrentar a revanchista Rússia — uma reversão história estarrecedora.

Dentro da Alemanha, há alguma hesitação. Johannes Arlt, um oficial da Força Aérea que se elegeu ao Parlamento pelo Partido Social-Democrata, de centro-direita, afirmou que seus eleitores do extremo nordeste do país expressaram receio a respeito de uma nova corrida armamentista. Ele culpou o governo por não fazer o suficiente para preparar o público para um papel mais ativo dos militares, comparando a Alemanha a um mau aluno que agora tenta passar no exame final.

“Estamos no fim do ano letivo e não fizemos nossa lição de casa, então agora temos de nos matar de estudar”, afirmou Arlt, que integra a comissão de defesa do Parlamento.

Ainda assim, quase 3 em cada 4 alemães apoiam a decisão de aumentar o gasto em defesa, de acordo com uma pesquisa recente, e claras maiorias expressam visões positivas em relação aos militares.

Soldado ucraniano caminha pelo vilarejo de Barvinkove, na região de Kharkiv Foto: MARKO DJURICA

Na realidade, partes da população estão frustradas porque consideram que o governo não está se mobilizando mais agressivamente. O chanceler foi criticado por não agir com rapidez suficiente para impulsionar as Forças Armadas ou apoiar a Ucrânia — e particularmente por titubear em relação à exportação de armamento pesado.

Scholz disse a jornalistas na terça-feira que a Alemanha está dando apoio aos aliados em seus envios de armas, mas está limitada em relação ao que é capaz de enviar diretamente. Ele também sustentou, contrariando o cronograma de tais manobras, que a Alemanha estabeleceu um exemplo em relação a envios de armas e que outros países da Europa “nos seguiram”.

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“O público em geral não é o problema”, afirmou Sönke Neitzel, historiador especializado em forças militares da Universidade de Potsdam. “Isso possivelmente serviu como desculpa aos políticos. Decorre mais da cultura política — da relação entre as elites e os partidos, dos círculos sociais em torno dos partidos.”

O público estaria aberto a argumentos em defesa de corporações militares mais fortes se os políticos os apresentassem, afirmou ele. A Ucrânia é um argumento a favor da importância das Forças Armadas, disse Neitzel, mesmo se a guerra não transformar atitudes culturais profundamente arraigadas. “Os EUA têm a cultura da vitória, e nós temos a cultura da derrota. Mas isso não significa que todos aqui sejam contra os militares — nem mesmo contra ser militar”, afirmou ele.

A dimensão da disposição dos alemães não apenas em apoiar as Forças Armadas, mas também em integrá-las, ajudará a determinar se o país será capaz de seguir com os planos de expansão das corporações militares para 203 mil soldados na ativa nos próximos anos — um aumento de 19 mil integrantes.

Pesquisas sugerem que estudantes consideram as Forças Armadas uma carreira desejável. E desde que a guerra na Ucrânia começou, o Ministério da Defesa detectou um aumento na atividade da página online de formulários de contato com as Bundeswehr, assim como uma alta em solicitações para orientação de carreira, afirmou uma porta-voz do ministério, Christina Routsi.

Ainda assim, ela afirmou que é cedo demais para tirar conclusões a respeito dos efeitos a longo prazo sobre o recrutamento.

Jana Puglierin, especialista em defesa que chefia o escritório em Berlim do Conselho Europeu de Relações Internacionais, afirmou estar cética a respeito da hipótese da guerra acender um novo interesse no serviço militar entre os alemães. Até mesmo ver comboios militares passando pelas ruas da Alemanha rumando a leste para fortificar o flanco oriental da Otan é um choque cultural, afirmou ela.

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“Tudo isso é muito novo para os alemães”, disse ela. “As atitudes podem se transformar, na melhor das hipóteses, vagarosamente, porque há uma nova percepção de ameaça. Pela primeira vez as pessoas sentem que as Bundeswehr servem a um propósito que também as beneficia.”

Zakrajsek, a jovem de 19 anos, afirmou que alguns de seus amigos que antes se animavam com a ideia do serviço militar voltaram atrás depois da invasão russa. “A maioria dos caras acha que eu sou louca por seguir adiante com isso”, disse ela. “Não sou a garota típica que faz as unhas e vai ao cabeleireiro.”

Zakrajsek também pode considerar a questão do serviço militar de uma perspectiva diferente. Ela foi criada pela mãe, Tamara, uma gerente de escritório que nasceu em Belgrado e cresceu livre da responsabilidade pelas barbaridades nazistas. O pai dela nasceu no leste da Alemanha, filho de um pastor que escapou de servir ao Terceiro Reich.

“Sou a favor da paz, mas acho importante defender seu país quando ele entra em guerra”, afirmou Tamara Zakrajsek, de 49 anos, que apoia a decisão de sua filha única em se voluntariar para o serviço militar. Ainda assim, disse ela, “Tenho medo de perdê-la”.

Maya Zakrajsek afirmou que o medo de sua mãe pesa, mas que não tem nenhuma dúvida quanto ao que quer da vida.

Ela relatou o momento em que soube da invasão russa, por seu melhor amigo, que estuda para se tornar especialista em TI das Bundeswehr. “Você leu a notícia?”, perguntou-lhe o amigo. “Agora estamos em guerra.”

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Ela disse que ficou em silêncio por um instante, mas que naquele momento soube exatamente o que era exigido dela — e da Alemanha.

“Acho que a Alemanha, neste caso, é importante”, afirmou ela. “Temos uma economia forte, e acho que seria bom se tivéssemos também corporações militares fortes.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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