Guerra na Ucrânia é um choque de civilizações; leia o artigo

Primeiros anos do século 21 forneceram evidências do apelo universal do capitalismo, do liberalismo e da democracia

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Por Ross Douthat
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THE NEW YORK TIMES - Em 1996, Samuel Huntington explicou que o mundo pós-Guerra Fria tornava-se “multipolar” e “multicivilizacional”, com potências em competição modernizando-se segundo linhas culturais, não simplesmente convergindo para o Ocidente liberal. O equilíbrio entre as civilizações oscilava, o Ocidente entrava em declínio e as sociedades que compartilham afinidades tinham mais propensão a se agrupar em alianças.

Esses argumentos fundamentaram o livro O Choque de Civilizações, uma alternativa para a tese do “fim da história”, de Francis Fukuyama. A ideia de Huntington poderia parecer pronta para uma nova apreciação diante da guerra de Vladimir Putin.

Para o francês Olivier Roy, pesquisador do Islã, a guerra na Ucrânia seria a prova de que o choque de civilizações não existe, já que russos e ucranianos compartilham o cristianismo ortodoxo. Escrevendo para a revista Compact, Christopher Caldwell apresenta ainda outra razão para rejeitar a aplicação de Huntington ao atual momento, sugerindo que o modelo civilizacional tem sido um parâmetro útil para entender os eventos dos 20 anos recentes, mas ultimamente temos retornado a um mundo de conflitos ideológicos, definido por uma elite ocidental que prega um evangelho universal de “neoliberalismo” e “lacração”, e pelos vários regimes que tentam resistir a isso.

Soldados ucranianos passam por posições russas conquistadas nos arredores de Kiev Foto: Vadim Ghirda / AP

Trata-se de uma leitura de direita a respeito do cenário global, hostil ao zelo missionário ocidental que ela descreve. Mas a análise de Caldwell remete ao argumento popular entre os progressistas de que o mundo está cada dia mais dividido entre liberalismo político e autoritarismo, democracia e autocracia, em vez de estar dividido em múltiplos polos e civilizações em competição.

Ainda assim, ambos os argumentos apresentam parâmetros mais inconsistentes que os de Huntington. Nenhuma teoria formulada 25 ou 30 anos antes pode ser um guia perfeito. Mas, se você quiser entender para onde caminha a política global, a tese de Huntington é mais relevante que nunca.

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Para perceber por que, coloque a mente nos anos imediatamente após a publicação do livro – a virada do milênio. Naqueles tempos, a análise de Huntington era usada para explicar a ascensão do terrorismo jihadista.

Em todas as outras arenas do mundo, porém, sua tese era duvidosa. O poder americano não parecia em declínio. A China estava se integrando ao mundo ocidental. A Rússia parecia aspirar alianças com EUA e Europa. Mesmo no mundo islâmico havia promessas democráticas, como o movimento verde iraniano e a Primavera Árabe.

Os primeiros anos do século 21 forneceram evidências do apelo universal do capitalismo, do liberalismo e da democracia, como oposição aos valores confinados às margens: islamistas, críticos da globalização de esquerda e o governo da Coreia do Norte.

O declínio do poder americano

A década passada, porém, fez Huntington parecer mais premonitório. Não apenas o poder americano declinou, mas os esforços pós-11 de Setembro de disseminar valores ocidentais pela força fracassaram. As divergências entre potências mundiais também seguiram os padrões civilizacionais.

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A meritocracia monopartidária da China, o czarismo não coroado de Putin e o triunfo das ditaduras no pós-Primavera Árabe não representam apenas formas de autocracias, mas também demonstram desenvolvimentos culturalmente distintos que cabem na classificação de Huntington e seu pressuposto de que heranças civilizacionais se manifestariam à medida que o poder do Ocidente diminuísse.

A região onde essa divergência tem sido mais fraca e onde a democratização pós-Guerra Fria é mais resiliente é a América Latina, sobre a qual Huntington expressou incerteza quanto a região merecer uma categoria civilizacional – se pertence aos EUA ou à Europa Ocidental. Ele escolheu a primeira hipótese, mas a segunda parece mais plausível hoje.

A região onde essa divergência tem sido mais fraca e onde a democratização pós-Guerra Fria é mais resiliente é a América Latina, sobre a qual Huntington expressou incerteza quanto a região merecer uma categoria civilizacional

Ross Douthat

E o que se pode dizer das previsões sobre a Ucrânia? Aqui, Huntington cometeu um erro: apesar de prever as divisões internas na Ucrânia, entre o leste, ortodoxo e russófono, e o oeste, católico e afeito ao Ocidente, seu postulado de que alinhamentos civilizacionais excederiam os nacionais não foram demonstrados com a guerra de Putin, na qual o leste da Ucrânia tem resistido à Rússia.

Os equívocos da teoria

Esse exemplo se enquadra num padrão mais abrangente: nenhuma das grandes potências não ocidentais emergentes construiu até agora grandes alianças com base em afinidades civilizacionais, o que significa que a terceira das quatro grandes previsões parece a mais fraca.

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Ele imaginou, por exemplo, que a China seria capaz de integrar Taiwan pacificamente e talvez até atrair o Japão para sua esfera de influência – cenário que parece improvável. Outro erro foi seu temor de que o mundo ocidental, em uma era de competição civilizacional, abandonaria sua própria distinção cultural e o multiculturalismo representaria sua derrocada – que os EUA se fragmentariam em enclaves de língua inglesa ou espanhola sob a pressão da imigração em massa.

Mas a lacração não significa que a balcanização étnica ou o multiculturalismo foram longe demais. Em vez disso, a atual guerra cultural pode, na verdade, estar reduzindo polarizações étnicas nos nossos partidos políticos – atraindo minorias raciais para a direita, por exemplo – ao mesmo tempo em que ocasiona o ressurgimento de cismas mais antigos da política anglo-americana.

Os lacradores parecem herdeiros dos puritanos da Nova Inglaterra e do zelo dos ianques; seus algozes são evangélicos sulistas, católicos conservadores e libertários descendentes de escoceses e irlandeses; e as instâncias dos debates são interpretações da fundação dos EUA, de sua Constituição, da Guerra Civil Americana e da definição das fronteiras do país.

Portanto, a atual guerra cultural nos EUA redime Huntington num sentido mais amplo, ao mesmo tempo que contraria um de seus temores mais específicos. Nossas várias batalhas sobre raça e sexo, liberalismo, educação e religião são respostas a um mundo que não considera garantida a hegemonia americana e o universalismo liberal. Mas que não correspondem a uma rendição a forças em dissolução. Em vez disso, se for haver algum choque de civilizações, o conflito dentro dos EUA será sobre o tipo de civilização que deveríamos ser. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO