Aleppo, durante séculos, foi uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Era habitada por muçulmanos sunitas e alauítas e por cristãos grego-ortodoxos e siríacos, além de uma proeminente comunidade judaica. Servia de entreposto comercial para comerciantes que seguiam do Mediterrâneo para o Golfo, de Istambul para Damasco e de Teerã para o Cairo. Haleb, como é conhecida em árabe, seria quase uma Londres ou Hong Kong dos dias de hoje, mas com contornos levantinos.
Com o Genocídio Armênio cometido pelas tropas otomanas na Primeira Guerra, Aleppo serviu de oásis para refugiados armênios da região da Anatólia que cruzavam o deserto em busca de abrigo - e serviria também de refúgio para iraquianos que fugiam da guerra após a invasão dos EUA ao Iraque em 2003.
Com a criação do Estado de Israel, em 1948, surgiu o primeiro sinal de que a tolerante Aleppo já não era a mesma. Afinal, a milenar comunidade judaica alepina passou a ser perseguida. Estes judeus foram para o vizinho Líbano e depois se espalharam em uma diáspora pelo mundo, do nova-iorquino Brooklyn ao paulistano Higienópolis.
A Aleppo capital comercial da Síria
Ao longo das décadas de 1950 e 60, Aleppo, que havia perdido importância regional com o fim do Império Otomano, se consolidou como o centro comercial da Síria. Era a cidade dos negócios, enquanto Damasco concentrava o poder político. Equivaleria a uma São Paulo ou Nova York da Síria, sendo inclusive a cidade mais populosa. Sua dominante elite comercial mantinha boas relações com o regime dos Assad.
Nesta Síria de antes da Guerra Civil, as divisões não eram sectárias, diferentemente do Líbano. Em Damasco ou Aleppo, não se perguntava a religião da pessoa. A identidade "síria" e "árabe" era mais importante. O caráter islâmico do país ficava em um segundo plano. Sempre lembro que o nome do país é "República Árabe da Síria", não "República Islâmica da Síria". O arabismo, implementado nos anos 1950 e 60, era uma ideologia forte também no Egito e no Iraque e muitas vezes tinha cristãos e muçulmanos seculares na vanguarda.
Economicamente, esta Síria foi estatizante até a chegada de Bashar ao poder. Jovem, de apenas 34 anos, o líder sírio buscou abrir um pouco a economia síria, valorizando o setor privado. Aleppo, naturalmente, acabou beneficiada. A chegada de refugiados iraquianos, muitos deles com qualificação profissional, ajudou a cidade. Aleppo também teve lucro com a aproximação entre Assad e a Turquia em 2007 e 2008. O comércio entre os dois países se multiplicou. Ao mesmo tempo, Aleppo nunca dependeu muito da economia libanesa, diferentemente de Damasco, que foi afetada pela retirada das forças sírias do Líbano em 2005.
Aleppo antes da Guerra Civil
Antes de eclodir a Guerra Civil, Aleppo estava em um de seus melhores momentos em décadas. Havia novamente se tornado um destino de turistas europeus, em busca do sabor de seus suqs, como são chamados os mercados árabes, e de igrejas e mesquitas com séculos de história. Também recebia turistas do Golfo, em busca de sua vida noturna e de seus restaurantes, inexistente em lugares como o Kuwait e a Arábia Saudita. Nenhum alepino podia imaginar que, em alguns anos, eles seriam sinônimo de destruição como Beirute nos anos 1980, Sarajevo nos anos 1990 e Bagdá nos 2000.
Em 2011, eclodiu a Primavera Árabe. Mas, na Síria, este levante não seguiu o mesmo processo da Tunísia e do Egito. Não houve um momento "praça Tahrir", como no Cairo, onde centenas de milhares de pessoas pediram a queda do ditador Hosni Mubarak. Damasco e Aleppo eram praticamente bolhas no início do conflito sírio em 2011.
As manifestações que ocorreram nas duas grandes metrópoles sírias, naquele primeiro momento, eram a favor do regime de Bashar al Assad, não contra. E há narrativas diferentes para explicar este fenômeno que tornou a primavera síria diferente da egípcia ou tunisiana. Os defensores de Assad argumentam que o líder era popular e poucos queriam a sua queda. Já os opositores dizem que funcionários públicos eram obrigados a ir aos protestos. E manifestações da oposição eram reprimidas com violência.
No começo do conflito, as forças rebeldes eram compostas por desertores do Exército da Síria. Aos poucos, porém, a Turquia passou a permitir a entrada de jihadistas de diferentes partes do mundo para lutar contra Assad, com quem os turcos haviam rompido. A Arábia Saudita e o Qatar, além dos EUA, começaram a armar estes grupos. Alguns deles se radicalizaram e se tornaram os mais fortes na frente contra Assad.
A divisão de Aleppo
A fronteira da Turquia com a Síria não se localiza muito distante de Aleppo. Estes grupos rebeldes, portanto, começaram a crescer nos arredores da metrópole. E eram mais preparados do que as facções atuantes nos subúrbios de Damasco. Para complicar, em Aleppo, o regime sírio não contava com o apoio do Irã e do Hezbollah para se defender, pois estes se focaram na proteção de Damasco e de Homs, próximas da fronteira com o Líbano, que é a área mais importante para o regime de Teerã.
Aleppo, distante, no norte da Síria, ficava isolada do regime e ameaçada não apenas pelos grupos rebeldes, como também pelo ISIS, também conhecido como Grupo Estado Islâmico ou Daesh. A metrópole era considerada fundamental pela oposição pois, uma vez conquistada, poderia se tornar a capital de uma Síria anti-Assad. O regime sabia disso e tentou ao máximo defender a cidade, inclusive com o apoio de milícias cristãs e alauítas pró-regime. Mas, no fim de 2012, a bolha Aleppo explodiu e a cidade foi invadida pelos rebeldes. O regime reagiu com força, e a destruição da milenar metrópole síria teve seu início. Ao longo de quatro anos se tornou uma cidade dividida, com o Leste nas mãos dos rebeldes, e o Oeste sob controle do regime. Dois mundos cujas diferenças foram se acentuando com o passar dos anos.
Os alepinos que ficaram no lado leste passaram a ser controlados por opositores. Não interessava se eles apoiavam ou não o regime. Já os do lado oeste, independentemente de gostar ou não de Assad, tinham de aceitar o governo sírio. Alguns, claro, no início, ainda cruzaram de um lado para o outro. Mas esta transição aos poucos ficou arriscada, sendo necessário cruzar a linha vermelha de fogo cruzado.
Aleppo era, portanto, como Berlim na Guerra Fria ou Beirute na Guerra Civil libanesa. Aos alepinos restava se adaptar a esta situação. Um estudante do lado oriental às vezes precisava largar a universidade porque esta estava no ocidental. Um advogado não chegava ao escritório. Um filho não podia visitar a mãe em um hospital. Amigos ficaram separados. Namorados também.
A retomada do Leste de Aleppo
Além deste drama, a violência prosseguia. Assad bombardeava o lado leste sem diferenciar militantes de civis. E os rebeldes, cada vez mais radicais, lançavam morteiros contra a parte oeste. O número de vítimas inicialmente era de centenas. Viraram milhares e dezenas de milhares.
No lado ocidental, a vida até remontava ao período da Síria pré-guerra. Instituições funcionavam com relativa normalidade. Havia jogos de futebol. Restaurantes e café abriam as portas para seus fregueses. As escolas e as universidades não interromperam as aulas. Não faltava comida nos mercados. Cristãos, armênios e ortodoxos, podiam ir à missa sem medo. Muçulmanos, à mesquita. Alguns, mesmo querendo o fim do regime, se resignavam a aceitar Assad, o vendo como a menos grave das alternativas.
No lado leste, há duas narrativas. A do regime afirma que os civis eram tratados como prisioneiros por grupos rebeldes com uma agenda terrorista jihadistas. Mulheres e minorias religiosas eram perseguidas. Já a oposição afirma que os civis eram impedidos de sair pelo regime.
Ao longo destes anos, em alguns períodos, imaginava-se que os opositores conseguiriam derrubar o regime no lado oeste. Em outros, parecia que o líder sírio conseguiria a vitória final.
O pêndulo sem dúvida mudou quando a Rússia decidiu intervir no conflito a favor de Assad. Os bombardeios se intensificaram. Chegaram milícias armadas pelo Irã para ajudar. O Exército sírio se reforçou. Após um cerco de meses, as forças do regime dominaram o lado oriental.
Agora, a dúvida é sobre como será o futuro. Para saber como será no curto e médio prazo, deve-se observar Homs, também parcialmente destruída. Basicamente, as áreas antes controladas pelo regime acabaram tendo de receber os de áreas bombardeadas. No longo prazo, na melhor das hipóteses, talvez Aleppo consiga se reconstruir como Beirute conseguiu. Mas leva tempo. Talvez décadas. E algumas cicatrizes, como observamos na capital libanesa, nunca cicatrizam.
Obs. Este post é baseado em textos que escrevi para o programa Sem Fronteiras na Globo News
Guga Chacra, blogueiro de política internacional do Estadão e comentarista do programa Globo News Em Pauta em Nova York, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia. Já foi correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Oriente Médio e em NY. No passado, trabalhou como correspondente da Folha em Buenos Aires