
Mesmo depois de uma década de Donald Trump na política americana ainda é difícil definir a sua ideologia. Trump não se encaixa nas definições tradicionais do movimento conservador, foi eleito com uma plataforma isolacionista e mostrou um impulso imperialista neste segundo mandato presidencial. Mas para a professora de história americana da Universidade Rutgers, Jennifer Mittelstadt, o movimento político que melhor define o presidente americano é o soberanismo.
O movimento foi criado nos Estados Unidos em 1919, em oposição à criação da Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental do mundo. O soberanismo foi desenvolvido para contrariar o chamado internacionalismo, ideologia que defende uma maior cooperação entre os países para a busca de interesses comuns.
“O movimento surgiu com a ameaça que os adeptos viam de um governo supranacional, que existiria acima das nações”, avalia a historiadora, em entrevista ao Estadão. O soberanismo consiste na ideia de autogovernança em todos os meios possíveis e uma atuação unilateral na política exterior, sem o engajamento em organismos internacionais que supostamente prejudicam a habilidade de os EUA se governarem.

Segundo a especialista, o movimento contribui para o entendimento de muitas propostas de Trump, como a sua obsessão pela retomada americana do Canal do Panamá, uma pauta antiga dos soberanistas, o desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com a historiadora, figuras influentes no governo Trump são soberanistas, como Stephen Miller, o vice-chefe de gabinete de Trump e conselheiro para política e imigração, Ed Martin, procurador-geral do Distrito de Columbia e diretor do Fórum Eagles, uma instituição conservadora, e Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca.
“A ideologia soberanista é sentida de várias formas dentro da administração Trump, está no projeto 2025 e na linguagem de diversas organizações que apoiam Trump”, avalia a professora da Universidade Rutgers.
Confira trechos da entrevista
Trump foi eleito com uma plataforma que tinha conceitos considerados isolacionistas, mas neste segundo mandato ele tem proposto ideias consideradas imperialistas. O conceito de soberanismo pode ser um considerado como um mix destes dois?
Não acredito que o soberanismo é um mix destes dois conceitos. Mas avalio ser importante pensar sobre isso. Especialistas mostram que o conceito isolacionista é incorreto para descrever aqueles que não queriam participar dos assuntos globais. Os chamados isolacionistas não queriam se engajar em um mundo multilateral, mas se engajaram nos seus próprios termos.
A Doutrina Monroe, promulgada pelo presidente James Monroe, que basicamente dizia que todo o hemisfério ocidental deveria ficar sob o guarda chuva dos Estados Unidos, era um conceito importante para os chamados isolacionistas, mesmo quando eles se opuseram a entrada dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial.
Então os americanos, mesmo os conservadores, sempre pensaram em como se engajar com o mundo.

Já o imperialismo é importante para entendermos os Estados Unidos no período do final do século 19 e começo do século 20. Os americanos brancos descendentes de europeus atravessaram o continente americano, tomando todos os recursos que quisessem e usando a Doutrina Monroe para interferir onde precisassem no Hemisfério Ocidental. Eles poderiam até mesmo atravessar o Pacífico se necessário.
Este impulso está presente em Trump, mas o movimento soberanista é algo distinto. Este grupo político nasceu nos Estados Unidos em 1919, como uma forma de oposição a criação da Liga das Nações, a primeira organização intergovernamental criada no mundo. Este movimento também foi criado como uma forma de se contrapor ao internacionalismo.
O soberanismo foi impulsionado pelo que eles viam como uma ameaça de um governo supranacional, que estaria acima da autoridade dos Estados Unidos. Eles entenderam que era preciso ter um movimento que pudesse se contrapor a ideia de ser governado por uma entidade multilateral internacional.
Ser soberanista significa a proteção de uma visão patriótica da nação americana, de suas fronteiras, de seus cidadãos.

Como podemos enxergar as propostas recentes de Trump por uma perspectiva soberanista?
O movimento soberanista ajuda a explicar a busca de Trump por territórios que eram dos Estados Unidos, mas foram retirados da posse americana por conta de acordos internacionais considerados ilegítimos pelos soberanistas. Esta lógica não funciona apenas com territórios, mas também com zonas de influência dos Estados Unidos.
Então a questão do Canal do Panamá realmente se encaixa na lógica soberanista. O desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) também se encaixa por representar um regime de ajuda internacional que os soberanistas sempre se opuseram. A retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) também representa isso.
O movimento soberanista não é isolacionista. Trump busca apoiar regimes anti-internacionalistas, como o governo de Viktor Orbán, da Hungria, e o de Giorgia Meloni, na Itália, como uma forma de desestabilizar a União Europeia (UE) se for possível.
O ceticismo de Trump em relação a Otan também se encaixa nas críticas do movimento soberanista que organizações internacionais e acordos multilaterais prejudicam a habilidade de os Estados Unidos se auto governarem.

Como Trump se encaixa nas visões do movimento conservador sobre política externa?
Os conservadores geralmente se encaixam em três caixas dentro da política externa: anti-comunistas, linhas-dura no setor de defesa e neoconservadores.
Nenhuma dessas visões realmente se aplicam a Donald Trump. Os especialistas começaram a ter dificuldades para entender a sua ideologia porque ele não é um homem ideológico, mas durante os últimos anos na cena nacional, pessoas que tem ideologia se juntaram à órbita dele, muitas delas do movimento soberanista.
Trump conseguiu unificar o movimento conservador em torno de sua imagem. Ele tinha uma oposição grande no começo, de pessoas mais ligadas a um conservadorismo mais tradicional, mas agora essa oposição é muito fraca.
Existem pessoas de dentro da administração que não são soberanistas? O secretário de Estado Marco Rubio parece ter uma ideologia diferente
Marco Rubio parece estar na categoria de conservadores anti-comunistas. Ele também é considerado um linha-dura na relação com a China.
Rubio parece entender a função da ordem internacional e de organismos internacionais como a OMS e o Tribunal Penal Internacional. Acredito que ele também enxerga a liderança americana como importante no mundo. A maioria dos conservadores tradicionais aceitam essa ordem mundial como uma ferramenta para que Washington exerça a sua influência e autoridade ao redor do globo.
Mas ainda precisamos observar como Marco Rubio vai atuar no Departamento de Estado. Existem outras pessoas importantes do governo Trump que não necessariamente são soberanistas, como o empresário Elon Musk.

Mas o impulso soberanista está presente e é preciso entendê-lo. Os soberanistas não aceitam a ordem mundial criada no pós-2ª Guerra Mundial, eles perderam todas as batalhas por décadas em sua luta contra essa ordem.
Eles enxergam a atual ordem como uma ameaça à soberania dos Estados Unidos.
Quem está por trás deste impulso soberanista no governo Trump?
Não acredito que Trump seja uma figura ideológica. Qualquer ideologia que se encaixar em seu impulso do momento vai servir.
No entanto, acredito que a estrutura mais ampla de suas políticas é criada por pessoas que se consideram soberanistas. Steve Bannon, o ex-estrategista-chefe da Casa Branca, é de fato um soberanista e fala muito sobre soberania nacional. Ele prefere se autodenominar um populista nacionalista, mas usa frequentemente o termo soberania.
Stephen Miller, o vice-chefe de gabinete de Trump e conselheiro para política e imigração, e Ed Martin, procurador-geral do Distrito de Columbia e diretor do Fórum Eagles, uma instituição conservadora pró-Trump, também se consideram soberanistas. No Projeto 2025 também existe a linguagem soberanista.
Esta é uma ideologia abrangente, que cresceu ao longo de muitas décadas em organizações de extrema direita, e que agora finalmente encontrou seu porta-voz e sua oportunidade nas políticas de Trump. Eles acreditam que essa agenda anti-internacionalista e soberanista pode florescer sob Trump.
Saiba mais
Trump gosta de se comparar ao ex-presidente William McKinley. Você acredita que eles são presidentes parecidos?
Não. Os historiadores especializados em McKinley ficaram chocados com a comparação de Trump. Não acredito que Trump saiba do que está falando ao tentar se comparar com McKinley.
A economia estava muito mal no governo dele e muitas recessões ocorreram. Era de fato um período extremamente volátil e de muita desigualdade para os trabalhadores americanos.
Não sei se alguém cochichou no ouvido de Trump sobre McKinley e ele tentou se comparar por conta das tarifas que o McKinley impôs, mas é uma comparação que não tem base verídica.