Na visita do presidente Jair Bolsonaro a Buenos Aires, falou-se em concluir as negociações sobre a reforma do Mercosul e entre o bloco e a União Europeia em três ou quatro semanas, e na criação de uma moeda única, o “peso real”. Tantos progressos causaram algumas suspeitas: negociações de duas ou mais décadas podem mesmo ter um desfecho tão breve? Seria bom ter uma moeda comum com a trepidante economia argentina?
O presidente Mauricio Macri se encaminha para uma acirrada disputa eleitoral com a ex-presidente Cristina Kirchner, que figura como vice na chapa de seu ex-chefe de gabinete Alberto Fernández. Kirchner carrega um pesado histórico de má gestão, perda de credibilidade do Estado e de seus índices, conflitos com os setores produtivos, corrupção e abuso de poder.
O fato de sua candidatura despontar como competitiva e até favorita dá uma medida da queda da confiança em Macri. Seu governo frustrou as expectativas que ele mesmo criou, de debelar a inflação e gerar crescimento econômico e empregos. O que está por trás disso são o pesado déficit público e o endividamento em dólares.
Enquanto o Brasil fazia a sua tarefa de casa com o Plano Real, os argentinos continuavam iludidos com atalhos e maquiagens, como a dolarização da economia. Essa é uma lição que precisa ser relembrada quando se fala da moeda comum: o que traz estabilidade e crescimento sustentável não é a moeda em si, mas os fundamentos da economia.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe disso, tanto que colocou o “peso real” em um horizonte de 20 anos, e sua equipe salientou que, antes de mais nada, o Brasil precisa fazer a reforma da Previdência, cujo rombo desequilibra as contas públicas. Acossados pelo fracasso de sua política econômica e pela aproximação da eleição, os argentinos é que querem trazer esse tema para a pauta, juntamente com a reforma do Mercosul e o acordo de livre-comércio com a UE, na tentativa de criar boas notícias.
As fraturas nos fundamentos econômicos, tanto do Brasil quanto da Argentina, são reflexos de traços culturais arraigados nesses dois países. Como me disse uma vez o psicanalista Marcos Aguinis, autor de O Atroz Encanto de ser Argentinos, esse povo está sempre em busca de um “deus ex machina”, a figura onipotente do teatro grego que interfere na história e subverte o destino em favor do herói.
Os brasileiros também têm atração por soluções mágicas. Aqui, essa tentação vem reforçada por um discurso sofisticado e perverso, que faz crer que as atuais regras previdenciárias e trabalhistas, as estatais, as regalias dos funcionários públicos e o protecionismo comercial promovem justiça social, quando na verdade perpetuam a exclusão. Como fazer frente a essas mentiras habilmente construídas e difundidas?
Acabo de voltar de uma viagem de 50 dias por seis países africanos e observei que as histórias de sucesso estão relacionadas com um bom aproveitamento de traços culturais. Mudanças desejáveis de comportamento têm sido conseguidas na África lançando-se mão de referências culturais, de valores e crenças que têm ressonância entre os africanos.
Em Ruanda, a reconciliação do genocídio de 1994 se conseguiu por meio de tribunais populares e tradicionais chamados de “gacacas”. No Quênia, conflitos étnicos têm sido evitados recorrendo-se à lenda sobre a origem do povo kikuyu, o mais numeroso, segundo a qual todas as tribos descendem de nove irmãs, ou seja, de uma mesma família. Seychelles construiu um Estado de bem-estar social, com boa educação e saúde públicas, com base na prática dos pescadores de repartir por igual o produto da pesca. O que, nas culturas brasileira e argentina, poderíamos explorar, para tirarmos nossos países do atoleiro em que se encontram?
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