Joe, ex-ativista político liberal californiano, que entrou em coma no governo Reagan, acordou sexta-feira passada e quase pediu para voltar a ser sedado por mais um tempo. Ele começou a se atualizar pela TV a cabo porque ainda não sabia navegar direito na internet e não entendeu bulhufas do que assistiu. Perguntou se ainda estava sob efeito de uns alucinógenos que tomou na faculdade, nos anos 1980. Os enfermeiros sacudiram a cabeça e, numa troca de olhares cúmplices, acharam melhor deixar o ex-comatoso em dúvida sobre a distinção entre fantasia lisérgica e realidade.
Mas o paciente foi ficando cada vez mais agitado com o que ouvia. Um conservador pedia a extinção do FBI. Um ex-assessor da campanha republicana se gabava, numa carta, de ser conselheiro do Kremlin. Temidos ex-promotores federais, acostumados a trancafiar políticos corruptos, mafiosos e criminosos de colarinho branco e agora transformados em comentaristas de TV, apontavam graves desafios à lei e ordem partindo da Casa Branca.
O mundo que Joe conhecia tinha sido virado ao avesso. Republicanos soavam como trotskistas, democratas citavam Reagan. O diretor do FBI foi ao Capitólio suplicar à liderança do Partido Republicano, que controla o Legislativo e o Executivo, para não divulgar um memorando que, além de mentiroso, revelaria aos serviços de inteligência da Rússia e países adversários detalhes de coleta de inteligência. Os argumentos do principal meganha do país foram reforçados por deputados e senadores considerados de esquerda. De esquerda! Um deles, um negro que tinha apanhado feio da polícia durante a luta pelos direitos civis e tinha ficha corrida no FBI na década de 1960, defendeu os meganhas. Como é que um júri vai condenar um traficante assassino com base numa investigação do FBI, argumentavam ex-perseguidos pelo FBI, se o FBI agora é classificado como uma organização guerrilheira maoista?
Joe pediu um Martini duplo e um cigarro na cama do hospital. Os médicos deram atestado autorizando a terapia heterodoxa e foram tomar uns shots escondidos, na sala de plantão. Isso foi depois de um líder evangélico declarar no ar que o atual presidente merece um passe livre por pagar US$ 130 mil pelo silêncio de uma atriz pornô com quem teve um caso de vários meses, enquanto sua terceira mulher amamentava o novo bebê em casa. Joe cobriu a cabeça com o travesseiro, enquanto um âncora lia as palavras da atriz, descrevendo um dos encontros sexuais com o futuro presidente: ele pedira para levar palmadas com um exemplar da revista Forbes em que ele aparecia posando junto com o filho mais velho e a filha.
Uma enfermeira teve a ideia de tentar distrair Joe e explicar a ele o que é a rede social. Trouxe um tablet e mostrou como era fácil abrir uma conta no Twitter. Quando voltou, meia hora depois, a pressão de Joe estava 18 por 15. Ele tinha descoberto que o presidente no controle do mais letal arsenal nuclear do mundo passava de cinco a oito horas por dia assistindo à TV a cabo, comendo cheeseburgers na cama e retuitando vídeos de neonazistas europeus.
O âncora de um programa, nascido quando Joe ainda estava inconsciente, perguntava “como posso disciplinar meus filhos pequenos por mentir?”, enquanto brandia a página do Washington Post compilando duas mil mentiras presidenciais no primeiro ano do mandato. Joe apertou o botão para chamar a enfermagem e, desta vez, veio um porto-riquenho sorridente. Joe tentou puxar conversa para se acalmar e perguntou pela família do enfermeiro. Ah, estão sem água e eletricidade há quatro meses, respondeu Miguel, dando de ombros. Mas Porto Rico é território americano!, exclamou Joe. Mas é território marrom, explicou o enfermeiro, de cabeça baixa.
Antes de ir embora, Miguel ainda esclareceu dúvidas de Joe sobre expressões em inglês que ele nunca tinha ouvido antes de entrar em coma. Pode chamar de fake news tudo o que lhe incomodar. E agora há uma orientação oficial definindo “fatos alternativos.” A presidência está liberada para gerar seus próprios fatos, do tamanho da multidão na posse à existência de uma conspiração de homens verdes nos serviços de inteligência. Diante da aflição confusa de Joe, Miguel tentou um consolo: pelo menos agora você não vai preso se comprar maconha.