Sucupirington

Uma pergunta marcou 2017 nos Estados Unidos: o que mais falta acontecer? A semana passada ofereceu nova resposta: cristãos conservadores defendendo pedofilia. A cena de um juiz da Suprema Corte do Alabama brandindo um revólver em pleno comício de campanha para senador não chegou a provocar choque este ano. Mas, quando o mesmo juiz, considerado lunático até por colegas republicanos, foi acusado por quatro mulheres diferentes de procurar menores para sexo, a reação chocou mais do que o escândalo original.

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Por Lúcia Guimarães

O juiz e candidato Roy Moore, de acordo com reportagem do Washington Post que ouviu trinta pessoas, era um promotor estadual de 32 anos em 1979, quando se aproximou de mulher sentada com a filha de 14 anos na porta de um tribunal. A mãe explicou que aguardava uma audiência de custódia. Ele se ofereceu para tomar conta da menina e evitar que ela se traumatizasse com o que fosse dito na audiência. Pegou o telefone da garota, dias depois foi buscá-la e a levou para uma casa de campo isolada duas vezes. Na segunda vez, tirou a roupa dela, se despiu e a abusou sexualmente. “Eu só queria que aquilo acabasse,” disse ao Post Leigh Corfman, a alegada vítima mais jovem que se conhece do juiz. A idade do consentimento sexual no Alabama é 16 anos. 

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Quando a reportagem saiu, na quarta-feira, um jornalista de Washington procurou vários líderes republicanos do Alabama. Além de ter ouvido manifestações de apoio inabalável a Moore, o repórter colheu a seguinte pérola do auditor estadual Jim Ziegler: “Lembre de José e Maria. Maria era adolescente e José era um carpinteiro adulto. Eles se tornaram os pais de Jesus,” argumentou o republicano, numa revisão bíblica da Imaculada Concepção.

Há uma nova casta política na Washington, uma capital cada vez mais parecida com a Sucupira de Dias Gomes. É a dos conservadores traumatizados com o vale tudo moral e ético que apodrece o Partido Republicano. Como gays perseguidos na Chechênia, a maioria dos membros eleitos desta casta tem medo de sair do armário e enfrentar tuítes presidenciais. Só os que desistiram de concorrer à reeleição protestam. Mas o establishment não eleitoral, formado de jornalistas, acadêmicos e ex-assessores de governos republicanos, tem pedido asilo em programas de cabo, excluindo, é claro, a Fox News, e publica artigos perguntando, o que mais é preciso para darem um basta?

O autor conservador Max Boot, que há mais de um ano denuncia o perigo do desprezo pelos fatos entre seus ex-aliados, chegou ao limite com o escândalo do juiz candidato. “Quando você começa a correr para o fundo, não consegue parar mais. Há sempre um novo nível de degeneração para ser explorado”, escreveu Boot, na sexta-feira, concluindo que, pela resposta a Roy Moore, o partido ao qual pertenceu durante 30 anos “não merece sobreviver”.

A mesma suspensão moral parece dar sinais de vida no Brasil e com apoio de gente com poleiro na mídia. Não é difícil imaginar, por exemplo, o eleitor que faça um comentário repulsivo como o feito no Congresso sobre a meritocracia do estupro dirigido a uma deputada. Misoginia, racismo, homofobia são ingredientes do discurso violento e, se estão mais visíveis, devemos agradecer à rede social. A diferença hoje é que a fronteira do tolerável foi derrubada por elites políticas com cumplicidade de parte da mídia.

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Assistir a sátiras políticas na TV americana hoje é sentir um frio na espinha quando acaba a gargalhada, porque nos damos conta de que, toda semana, a realidade de Washington supera a imaginação do comediante. Quando conservadores dizem que um acusado de pedofilia é preferível a qualquer democrata, fica claro que não se trata mais de divergência política e, sim, da sucupirização da democracia.

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