DETROIT - Michigan tornou-se um símbolo de como Donald Trump ganhou de Hillary Clinton em 2016. O republicano teve cerca de 10 mil eleitores a mais no Estado, o suficiente para ganhar os 16 delegados da região no colégio eleitoral. Com vitórias também nos Estados vizinhos do chamado Cinturão da Ferrugem, Trump tornou-se presidente apesar de ter 3 milhões de votos a menos do que a democrata. Desde o agravamento da crise de saúde e econômica nos EUA, no entanto, Michigan tem afastado o presidente da reeleição ao se tornar um microcosmo da escalada de crises social, de saúde e econômica nos EUA.
Na metade do ano, a taxa de mortes por covid-19 chegou a ser das mais altas do país, o índice de desemprego, o terceiro pior e o isolamento social e o uso de máscara dividiram a população a ponto de provocar protesto armado e uma morte. O racismo foi escancarado na pandemia, as manifestações após a morte de George Floyd chegaram a cidades conservadoras e a reabertura econômica precisou ser revista.
Michigan é crucial para a vitória eleitoral em novembro, seja de Trump ou de Joe Biden. A fotografia captada pelas pesquisas mais recentes mostra que a turbulência interna acima da média nacional e a opção de Trump pelo radicalismo na resposta às crises têm pavimentado o caminho para Biden, que saiu de uma vantagem de 3 pontos porcentuais em Michigan em abril para cerca de 8 pontos na semana antes da eleição.

“Para uma área conservadora, ver as manifestações do Black Lives Matter na cidade de Grand Rapids, com muitas pessoas brancas, foi surpreendente. O clima mudou. As pessoas estão abertas a uma linha muito mais moderada do que a que o presidente tem adotado como resposta aos protestos”, diz Gary Stark, presidente do comitê democrata de Kent County.
No oeste do Estado, Grand Rapids é a maior cidade de Kent County, um distrito que era considerado território seguro para os republicanos até a eleição de Barack Obama em 2008. Em 2016, Trump recebeu 48% dos votos e Hillary, 45% – uma diferença de 9,5 mil eleitores. A campanha de Biden aposta no maior comparecimento do eleitorado de alta escolaridade dos subúrbios e dos jovens da região, impulsionados pelo sentimento anti-Trump.
Quem visita Grand Rapids recebe como recomendação dos moradores locais ir ao Museu Presidencial Gerald Ford. O fato de o 38.º presidente americano ter crescido na cidade é motivo de orgulho entre eleitores de qualquer espectro político. Republicano, Ford assumiu depois da renúncia de Richard Nixon em meio ao escândalo Watergate e ficou conhecido como um líder moderado. No museu, a palavra “bipartidário” está gravada em relevo em uma das paredes.
A cidade passou a ser identificada como a terra dos republicanos moderados – que não são a base fiel de apoio de Trump, especialmente quando o presidente decide radicalizar o discurso. “Os ‘republicanos Gerald Ford’ dizem que Trump foi longe demais”, afirma Stark.
Alguns sinais dão esperança aos democratas. Nas eleições de 2018, a maioria dos eleitores de Kent County votou na democrata Gretchen Whitmer para o governo estadual. No ano seguinte, o deputado republicano Justin Amash, que representa o condado na Câmara, rompeu com Trump e se tornou independente. Esta será a primeira eleição presidencial em que o voto por correio está autorizado no Estado sem necessidade de justificativa – um pedido dos democratas durante a pandemia.
Dos 538 delegados do colégio eleitoral, cerca de 100 estão em disputa. Biden tem mais de 50% das intenções de voto em três dos Estados relevantes: Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, segundo a média calculada pelo site FiveThirtyEight, que agrega as pesquisas eleitorais. Hillary liderava também nestes três Estados em 2016, mas nunca cruzou a marca de mais da metade das intenções de voto, segundo o mesmo site.
Para o escritor e ativista social Yusef Shakur, que vive em Detroit, do outro lado do Estado, os protestos após a morte de George Floyd foram uma “explosão” de demandas da população negra. Michigan foi um dos primeiros Estados a ter dados que mostraram que a letalidade da covid-19 é desproporcionalmente maior entre negros do que em brancos.
Os cidadãos negros representam 14% da população de Michigan, mas 40% dos mortos pela doença. A antiga capital mundial do carro, que entrou em concordata em 2013 e virou símbolo da destruição do sonho americano, passou a viver nos últimos anos um renascimento.
As ruas do centro de Detroit têm tapumes de grandes obras de complexos comerciais ou ruínas de prédios abandonados – e, às vezes, as duas coisas juntas. Shakur afirma que a população negra, cada vez mais empurrada aos subúrbios, ficou excluída do esplendor da cidade vendido em panfletos publicitários de um centro renovado.
“Esse é um Estado predominantemente branco. A maioria branca está querendo ir ao bar, ao restaurante, à barbearia. Enquanto isso, em Detroit, nós (negros) estamos lutando pela vida, contra o coronavírus e contra o assassinato policial”, afirma Shakur.
Centenas de manifestantes armados, alguns com fuzis, protestaram no Legislativo estadual contra as medidas de isolamento adotadas pela governadora democrata. Em maio, o segurança de uma loja foi assassinado a tiros na cidade de Flint, também em Michigan, após exigir que um cliente colocasse a máscara.
A base de Trump no Cinturão da Ferrugem é formada por homens brancos sem diploma universitário. Em 2016, o republicano venceu ao prometer restrições à imigração para proteger empregos dos americanos. A crise econômica que atinge o país coloca em xeque o discurso antigo, mas Trump tem tentado reduzir o tamanho do problema. “A economia americana está voltando à vida como nunca se viu antes”, afirmou o presidente depois da reabertura econômica.
O desemprego passou a diminuir depois de atingir a marca de mais de 14% em abril e está na casa dos 8%. Antes da pandemia, a taxa de desemprego era de 3,5%. Em Michigan, a taxa de desemprego, chegou a ser a terceira pior do país no auge da crise, com 21,2% dos trabalhadores sem emprego.
“Trump não terá oponente no oeste do Michigan”, disse Tom Norton, que disputa a nomeação do Partido Republicano para concorrer a uma vaga na Câmara e aposta nos conservadores do Estado, com a segurança de que o republicano iria se sair bem no Estado mesmo depois da crise.
Frequentador da CPAC, a conferência que se tornou a meca do conservadorismo, Norton tem posições mais extremas do que o presidente. Ele duvida das pesquisas eleitorais, afirma que não há comprovação de que máscaras caseiras protejam contra o coronavírus (apesar de pesquisas científicas terem confirmado o contrário) e defende que os negócios sejam reabertos de uma vez, para que as pessoas fiquem doentes depressa e a crise seja superada.
“Tem de reabrir. As pessoas que ficarem doentes são as que não usam álcool desinfetante de mãos. Olha a Suécia, está funcionando muito bem”, afirma. Países que tentaram essa estratégia, a busca da imunidade de rebanho – de eficácia não comprovada, precisaram voltar atrás. Mesmo Trump critica o método.
A maioria dos moradores do Estado (64%) diz aprovar as medidas da governadora democrata para conter o vírus. Entre os independentes, a aprovação é semelhante, de 65%.
Republicanos do comitê local do partido têm uma visão diferente da de Norton sobre a situação de Trump. Sob reserva, um integrante do partido afirma que Trump pode ter problemas com um eleitorado moderado, cansado de divisões partidárias, que apoiou o atual presidente em 2016.
O sucesso do presidente, diz esse mesmo republicano, depende da percepção local sobre a economia. Questionado algumas vezes sobre o que deixa eleitores da região desconfortáveis sobre Trump, Norton responde: “A única coisa que as pessoas mencionam como negativo é o que ele fala no Twitter”.
Novos moradores
Parece que a principal avenida de Hamtrack, no Estado de Michigan, nem fica nos EUA. O comércio é formado por mercearias com letreiros em árabe e a repórter do Estadão era a única mulher adulta a circular na rua sem usar o véu islâmico. Em uma casa de câmbio dentro de um café iemenita trabalha Younes Murshed. Aos 19 anos, ele estuda pediatria e toca o pequeno comércio dos pais, que tem na parede uma grande foto da cidade onde nasceu: Saana. Em novembro, ele pretende votar pela primeira vez.
“O jeito como Trump se volta contra árabes e mexicanos é desrespeitoso. Imagino que ele seja assim porque era muito rico e seu ego, muito grande”, diz o jovem. A insatisfação com a política anti-imigração do presidente Donald Trump é recorrente em Michigan, onde 7% dos moradores é imigrante. O Estado tem mais novos eleitores naturalizados do que a diferença de votos que deu a Trump a vitória no Estado, em 2016. Um em cada 12 habitantes tem um parente nascido fora dos EUA.
Um estudo encomendado pela associação New American Leaders, que apoia imigrantes que concorrem a cargos eletivos, mostra que há 64 mil novos cidadãos naturalizados Estado de Michigan, que garantiram o direito de votar nos últimos quatro anos - quase seis vezes o número de votos que Trump recebeu a mais do que Hillary em 2016.
Um mural pintado pelo chileno Dasic Fernández, com o desenho de uma mulher muçulmana e árvores típicas do Iêmen, é o que garante o colorido de Hamtrack em uma tarde nublada.
O painel foi encomendado pela associação local de imigrantes que vivem no sul de Michigan. Uma das doadoras para o projeto foi Rashida Tlaib, a deputada muçulmana eleita pelo Estado que, junto com a estrela jovem do Partido Democrata, Alexandria Ocasio-Cortez, é parte da ala progressista do partido democrata, mais alinhada ao senador Bernie Sanders.
Trump sabe que o voto dos imigrantes será crucial nas eleições. Em janeiro, ele esteve em Warren, nos arredores de Detroit, onde fez um discurso na porta de uma fábrica em que prometeu proteger cristãos iraquianos da deportação. O recado vem depois de a comunidade de iraquianos em Michigan ter sofrido com as ondas de deportação do governo republicano.
Milad é iraquiano e vive em Michigan há dois anos. Antes de mudar para os EUA, há nove anos, morou no Líbano. Ele se diz insatisfeito com o tratamento dado aos imigrantes, mas não pretende votar. Engajar os imigrantes como ele e registrá-los para que possam ir às urnas é um dos desafios das campanhas eleitorais, especialmente dos democratas, que precisam desta parcela do eleitorado.
“Há interesses que controlam o presidente por trás das cortinas”, afirma Milad. A desconfiança não é limitada à política. Depois de mais de uma hora de conversa, ele diz que não quer ver seu sobrenome publicado.
O principal gargalo dos EUA, segundo ele, é o acesso à saúde. “Na Europa, se você não pode comprar um remédio, o governo te oferece. Mas, nos EUA, eu e um cachorro não temos diferença alguma sem um convênio médico.”
Do outro lado do Estado, a duas horas e meia de Detroit e mais perto do Lago Michigan, a política de Trump contra imigração deixa irritada Lilly Alegria, cujos pais são da Guatemala. “Há várias coisas que ele está fazendo contra os latinos que não são certas”, afirmou.
A população hispânica da cidade de Wyoming, subúrbio de Grand Rapids, no leste de Michigan, mais do que dobrou de 2000 para 2010, segundo o censo americano. Em alguns condados, o total de imigrantes aumentou quatro vezes desde a década de 90, o que reflete os números no restante do país. No mercado com produtos latinos frequentado por Lilly, em Wyoming, o idioma oficial é o espanhol.
“Desde que se tornou presidente, a primeira coisa que Trump disse foi ‘imigrantes’ e ‘fronteira’. Ele é contra os hispânicos, é racista. Desde que assumiu, brancos se voltaram contra mim em um restaurante. Aconteceu aqui, em Michigan, e em Atlanta, na Geórgia”, conta.
Ela é uma das eleitoras independentes que aprova as medidas de isolamento social para conter a pandemia e gostaria até que tivessem sido ainda mais restritivas. "A governadora não deveria ter reaberto os bares tão cedo", afirma, dias depois de saber que um parente próximo fora diagnosticado com covid-19.
O plano de reabertura de Michigan, governado por uma democrata, foi colocado em prática bem depois de Estados com governos republicanos, como a Geórgia, mas a governadora precisou recuar e impor mais limitações ao ver o número de casos voltar a crescer.
Lilly é uma das poucas que ainda não decidiu se vai votar em Biden ou em uma terceira via. A redução no número de indecisos nos Estados do Meio-Oeste, comparado com 2016, tem garantido a margem de vantagem consistente de Biden. Para vencer, os democratas precisam evitar que eleitores insatisfeitos com Trump votem em candidatos de partidos nanicos sem chance de vitória. Até agora, ela tem uma certeza: “Trump não terá meu voto”. Para recuperar a Casa Branca, porém, os democratas precisarão mais do que isso.