No Iêmen, ainda existem crianças-soldado apesar da promessa houthi

Apesar de um acordo com a ONU em abril para interromper a prática, os rebeldes houthis continuam a recrutar crianças para as fileiras militares para lutar na guerra civil do país

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Por Samy Magdy

ASSOCIATED PRESS, CAIRO - No vídeo, um homem fica em frente a um quadro-negro em uma sala de aula cheia, ensinando sobre as partes de um fuzil AK-47. Ele então o entrega a um menino, mostrando-lhe como engatilhar.

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Outras crianças se aglomeram ao redor e muitas que parecem não ter mais de 10 anos, esperam sua vez. O vídeo, vazado online este mês, fornece uma rara janela para a doutrinação de crianças-soldado pelos rebeldes houthis do Iêmen. Moradores locais confirmaram à Associated Press que o vídeo foi filmado nas últimas semanas na província de Amran, controlada pelos rebeldes do Iêmen, a noroeste da capital, Sanaa.

Apesar de um acordo com a ONU em abril para interromper a prática, os houthis continuam a recrutar crianças para as fileiras militares para lutar na guerra civil do país, disseram à AP autoridades houthis, trabalhadores humanitários e moradores.

Dois oficiais houthis disseram que os rebeldes recrutaram várias centenas de crianças, incluindo algumas de 10 anos de idade, nos últimos dois meses. Essas crianças foram enviadas para as linhas de frente, como parte de um acúmulo de forças que ocorre durante uma trégua mediada pela ONU, que dura mais de dois meses, disse uma autoridade.

Kahlan, ex-criança-soldado de 12 anos, demonstra como usar uma arma, em um campo para deslocados onde se refugiou com sua família, em Marib, Iêmen, 27 de julho de 2018 Foto: Nariman El-Mofty/AP

Os oficiais, ambos linha-dura dentro do movimento houthi, disseram não ver nada de errado com a prática, argumentando que meninos de 10 ou 12 anos são considerados homens.

“Não são crianças. São homens de verdade, que devem defender sua nação contra a agressão saudita, americana e defender a nação islâmica”, disse um deles. Os dois falaram sob condição de anonimato para evitar atritos com outros houthis.

Os houthis usaram o que chamam de “acampamentos de verão” para disseminar sua ideologia religiosa e recrutar meninos para lutar. Esses acampamentos acontecem em escolas e mesquitas ao redor da parte do Iêmen controlada pelos houthis, que abrange o norte e o centro do país e Sanaa.

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O conflito no Iêmen eclodiu em 2014, quando os houthis desceram de seu enclave ao norte e tomaram Sanaa, forçando o governo internacionalmente reconhecido a fugir para o sul. Uma coalizão liderada pela Arábia Saudita entrou na guerra no início de 2015 para tentar restaurar o poder do governo, realizando uma campanha aérea destrutiva e armando forças anti-houthis.

A guerra matou mais de 150.000 pessoas, incluindo mais de 14.500 civis e mergulhou o país em uma situação próxima da fome, criando uma das piores crises humanitárias do mundo.

As crianças-soldado foram envolvidas há anos. Quase 2.000 crianças recrutadas pelos houthis foram mortas no campo de batalha entre janeiro de 2020 e maio de 2021, segundo especialistas da ONU. As forças pró-governo também usaram crianças combatentes, mas em um grau muito menor, e tomaram medidas maiores para interromper a prática, segundo autoridades da ONU e equipes de ajuda.

No geral, a ONU diz que mais de 10.200 crianças foram mortas ou mutiladas na guerra, embora não esteja claro quantas podem ter sido combatentes.

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Em abril, os rebeldes assinaram o que a agência infantil da ONU descreveu como um “plano de ação” para acabar e impedir a prática. O porta-voz da ONU, Stephane Dujarric, disse que os rebeldes se comprometeram a identificar crianças em suas fileiras e liberá-las dentro de seis meses.

A Unicef e os houthis não responderam aos pedidos de comentários sobre o recrutamento contínuo desde então.

Quatro trabalhadores humanitários de três organizações internacionais que operam em áreas controladas por rebeldes disseram ter observado a intensificação dos esforços houthis para recrutar crianças nas últimas semanas. As fileiras dos houthis foram reduzidas por causa das perdas no campo de batalha, especialmente durante uma batalha de quase dois anos pela cidade essencial de Marib.

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Os trabalhadores humanitários falaram sob condição de anonimato por medo de sua segurança e de que seus grupos pudessem ser impedidos de trabalhar em território controlado pelos houthis.

Eles disseram que os rebeldes pressionaram as famílias a enviar seus filhos para campos onde aprendem a manusear armas e plantar minas, em troca de serviços como rações alimentares de organizações internacionais.

O centro de Reabilitação de Crianças Recrutadas e Impactadas pela Guerra no Iêmen é visto em Marib, Iêmen, 28 de julho de 2018 Foto: Nariman El-Mofty/AP
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Um trabalhador humanitário que opera em áreas remotas do norte descreveu ter observado crianças de 10 anos em postos de controle ao longo da estrada, com fuzis AK-47 pendurados em seus ombros. Outras são enviadas para a linha de frente. Ele disse que crianças voltaram feridas dos combates em Marib.

Milhares de combatentes foram mortos na batalha pelo governo de Marib. A longa tentativa dos houthis de tomá-lo foi finalmente interrompida no final de 2021, quando as forças do governo foram reforçadas por combatentes mais bem equipados apoiados pelos Emirados Árabes Unidos.

Abdel-Bari Taher, comentarista iemenita e ex-chefe do Sindicato dos Jornalistas do país, disse que os houthis estão explorando os costumes locais em detrimento das crianças e da sociedade. Ter ou carregar uma arma é uma tradição profundamente enraizada no Iêmen, especialmente nas comunidades rurais e montanhosas, ele disse.

“É uma fonte de orgulho e uma espécie de masculinidade para os meninos”, ele disse.

Os houthis também condicionam o auxílio alimentar essencial às crianças que frequentam os campos de treinamento, dizem alguns.

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Dois moradores da província de Amran disseram que representantes houthis foram às suas casas em maio e lhes disseram para preparar seus filhos para os acampamentos no final do ano letivo. Os moradores, que são agricultores, falaram sob condição de anonimato por medo de represálias.

Eles disseram que seus cinco filhos, com idades entre 11 e 16 anos, foram levados no final de maio para a escola onde o vídeo foi gravado. Um pai disse que lhe falaram que se ele não enviasse seus filhos, sua família não receberia mais rações de comida.

O painel de especialistas da ONU disse no início deste ano que os houthis, um movimento religioso xiita-zaidi que virou milícia rebelde com laços com o Irã, tem um sistema para doutrinar crianças-soldado, incluindo o uso de ajuda humanitária para pressionar famílias.

Primeiramente, as crianças são levadas aos centros para um mês ou mais de cursos religiosos. Lá, elas são informadas de que estão entrando em uma guerra santa contra judeus, cristãos e países árabes que sucumbiram à influência ocidental. Crianças de sete anos aprendem como limpar armas e como desviar de disparos, descobriram os especialistas.

No passado, os houthis negaram oficialmente o alistamento de crianças para o combate.

Mas eles também forneceram provas do contrário. Um houthi de alto escalão, Mohammed al-Bukhaiti, postou um vídeo no início de junho de uma visita que fez a um dos campos na província de Dhamar. Ele mostra dezenas de crianças em uniformes em uma formação militar e declarando lealdade ao principal líder do movimento rebelde, Abdul-Malek al-Houthi.

“Soldados de Deus”, elas gritam. “Nós estamos chegando.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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