Nosso mundo em constante mudança

Desde 1946, houve apenas 12 casos de alteração de fronteiras à força; Coreia do Norte, Síria e Rússia ainda veem guerras e conquistas como solução

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Por Fareed Zakaria
Atualização:

Ao invadir a Ucrânia, a Rússia trouxe para o primeiro plano um importante debate sobre o mundo em que vivemos. Muitos críticos acusam o governo de Barack Obama de não querer enxergar a dura realidade mundial por acreditar, como disse um editorial do Wall Street Journal, num "mundo de fantasia de normas internacionais". Por sua vez, John McCain declarou que "esse é o presidente mais ingênuo da história". O conselho editorial do Washington Post teme que o presidente Obama esteja equivocado quanto à "natureza do século em que vivemos". Quase todos esses críticos ridicularizaram a afirmação de John Kerry de que a mudança das fronteiras pela força, como foi o caso da Rússia, é um comportamento típico do século 19 transplantado para o século 21. E aqui estão os fatos. O estudioso Mark Zacker calculou o número das mudanças de fronteiras realizadas pela força, outrora bastante comum. Esta prática, ele observa, está em acentuado declínio desde a 1.ª Guerra, e, nas últimas décadas, esse declínio acelerou. Antes de 1950, as guerras entre nações foram a consequência de mudanças de fronteiras (anexações) cerca de 80% das vezes. Depois de 1950, o número caiu para 27%. Na realidade, desde 1946, houve apenas 12 casos com consideráveis alterações de fronteiras mediante a utilização da força - e todos eles antes de 1975. Portanto, o comportamento de Putin pertence realmente ao século 19. A transformação das relações vai muito além das alterações das fronteiras. Steven Pinker, da Universidade Harvard, coligiu grande parte dos dados sobre as guerras em seu extraordinário livro The Better Angels of Our Nature. Em um ensaio mais recente, ele destaca que, "depois de um período de 600 anos em que os países da Europa Ocidental deflagravam duas guerras por ano, a partir de 1945, não travaram nenhuma. Tampouco as cerca de 40 nações mais ricas do mundo envolveram-se em outro conflito armado". As guerras coloniais, uma característica constante no mundo todo durante milhares de anos, estão extintas. As guerras entre países - não apenas entre as principais potências, e nem apenas na Europa - também se reduziram drasticamente, mais de 50%, nos últimos 30 anos. Os acadêmicos da Universidade de Maryland tabularam o número de novos conflitos que eclodiram em todo o mundo e concluíram que a década passada testemunhou o seu menor número desde a 2.ª Guerra. Muitos aspectos da vida internacional continuam terríveis e brutais, e é fácil parecermos duros ao sugerir que achamos compreensíveis as duras realidades da política do poder. Mas a realidade mais impressionante e notável a respeito do mundo em que vivemos é a que diz respeito à enorme mudança de tudo o que está ao nosso redor, principalmente desde 1945. Ironicamente, o Wall Street Journal não reconhece o novo mundo porque foi criado, em grande parte, em razão do capitalismo e do livre comércio. Há vinte anos, Lee Kuan Yew, de Cingapura, o estadista mais realista que já conheci, me disse que os países asiáticos conhecem o custo da guerra e os frutos da interdependência econômica e do desenvolvimento, e não trocariam estes por aqueles. O nosso debate não é acadêmico. A melhor maneira de tratar da agressão da Rússia na Crimeia não é apresentando-a como uma decisão corriqueira de política externa baseada no interesse nacional, que será contestada por Washington numa espécie de competição entre duas grandes potências. E sim, ressaltando como fez Obama esta semana em Bruxelas, que a Rússia está pondo tremendamente em risco a ordem global da qual o mundo inteiro tem-se beneficiado. Podemos comparar como o governo Obama tratou esta última agressão russa à resposta do governo Bush às ações de Putin na Georgia, em 2008. Lembremos que a da Georgia foi uma invasão escandalosa. Moscou enviou tanques e artilharia pesada para a região, o que provocou a morte de centenas de pessoas, enquanto outras 200 mil tiveram de abandonar suas casas. Entretanto, a resposta foi, essencialmente, o silêncio. Desta vez, a questão foi mais grave. Em parte, a diferença está na natureza dos interesses em jogo, mas também talvez tenha a ver com o fato de que o governo Obama se preocupou em apresentar as ações da Rússia em um contexto mais amplo e em fazer com que os outros países também as vissem desta maneira. Podemos perceber um intuito semelhante em relação ao Irã. O governo Bush pressionava em grande parte aquele país em termos bilaterais. O governo Obama conseguiu exercer uma pressão muito mais eficiente porque apresentou o programa nuclear iraniano como uma ameaça às normas globais de não proliferação, convenceu as outras grandes potências a apoiar as sanções aplicadas por intermédio das Nações Unidas, garantindo desse modo que fossem abrangentes e severas. É assim que deve ser a liderança no século 21. Existe, de fato, uma ordem internacional em evolução com novas normas globais que tornam as guerras e as conquistas cada vez mais raras. Devemos fortalecê-las, e não ridicularizá-las. De fato, há alguns países que se opõem a esta tendência - como a Coreia do Norte, a Síria e a Rússia. As pessoas que governam estes países acreditam estar trilhando o caminho que as levará à grandeza e à glória. Mas são elas que vivem num mundo de fantasia. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLAÉ ESCRITOR E JORNALISTA

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