A geometria é uma linguagem que só os humanos conhecem?

Os neurocientistas estão explorando se formas como quadrados e retângulos - e nossa capacidade de reconhecê-los - são parte do que torna nossa espécie especial

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Por Siobhan Roberts
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Durante um workshop no outono (do hemisfério norte) no Vaticano, Stanislas Dehaene, neurocientista cognitivo do Collège de France, fez uma apresentação narrando sua busca para entender o que torna os humanos - para o bem ou para o mal - tão especiais.

Dehaene passou décadas sondando as raízes evolutivas de nosso instinto matemático; este foi o tema de seu livro de 1996, The Number Sense: How the Mind Creates Mathematics (O Sentido do Número: Como a mente cria a matemática). Recentemente, ele se deteve em uma questão relacionada: que tipos de pensamentos, ou cálculos, são exclusivos do cérebro humano? Parte da resposta, acredita Dehaene, pode estar em nossas intuições aparentemente inatas sobre geometria.

Neurocientistas estudam se a capacidade de reconhecer formas geométricas é uma capacidade que faz os humanos especiais. Foto: Yoshi Sodeoka/The New York Times

Organizado pela Pontifícia Academia de Ciências, o workshop do Vaticano abordou o tema “Símbolos, Mitos e Sentido Religioso nos Humanos desde os Primeiros” - isto é, desde que os primeiros humanos surgiram há alguns milhões de anos. Dehaene começou sua apresentação com uma colagem de fotografias mostrando símbolos gravados em rochas - foices, machados, animais, deuses, sóis, estrelas, espirais, ziguezagues, linhas paralelas, pontos. Ele tirou algumas das fotos durante uma viagem ao Vale das Maravilhas, no sul da França. Acredita-se que essas gravuras datam da Idade do Bronze, aproximadamente 3300 a.C. a 1200 a.C.; outras tinham 70.000 e 540.000 anos. Ele também mostrou uma foto de um instrumento de pedra “biface” - esférico em uma extremidade, triangular na outra - e observou que os humanos esculpiram ferramentas semelhantes há 1,8 milhão de anos.

Para Dehaene, é a inclinação para imaginar - um triângulo, as leis da física, a raiz quadrada de menos 1 - que capta a essência do ser humano. “O argumento que fiz no Vaticano é que a mesma capacidade está no centro de nossa capacidade de imaginar a religião”, lembrou recentemente.

Ele reconheceu, com uma risada, que não é pequeno o salto de imaginar um triângulo para conceber a religião. (Sua própria trajetória intelectual envolveu uma formação em matemática e um mestrado em ciência da computação antes de se tornar um neurocientista.) No entanto, ele disse: “É isso que temos que explicar: de repente, houve uma explosão de novas ideias com a espécie humana”.

Humano ou Babuíno?

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Na primavera passada, Dehaene e seu aluno de doutorado Mathias Sablé-Meyer publicaram, com colaboradores, um estudo que comparou a capacidade de humanos e babuínos de perceber formas geométricas. A equipe se perguntou: qual foi a tarefa mais simples no domínio geométrico - independente da linguagem natural, cultura, educação - que poderia revelar uma diferença marcante entre primatas humanos e não humanos? O desafio era medir não apenas a percepção visual, mas um processo cognitivo mais profundo.

Essa linha de investigação tem uma longa história, mas é eternamente fascinante, de acordo com Moira Dillon, cientista cognitiva da Universidade de Nova York que colaborou com Dehaene em outras pesquisas. Platão acreditava que os humanos tinham uma sintonia única com a geometria; O linguista Noam Chomsky argumentou que a linguagem é uma capacidade humana biologicamente enraizada. Dehaene pretende fazer pela geometria o que Chomsky fez pela linguagem. “O trabalho de Stan é realmente inovador”, disse Dillon, observando que ele usa ferramentas de última geração, como modelos computacionais, pesquisa entre espécies, inteligência artificial e técnicas funcionais de neuroimagem de ressonância magnética.

No experimento, os participantes viram seis quadriláteros e tinham que detectar aquele que era diferente dos outros. Para todos os participantes humanos - adultos franceses e alunos do jardim de infância, bem como adultos da Namíbia rural sem educação formal - essa tarefa de detectar o “intruso” foi significativamente mais fácil quando as formas da linha de base ou as externas eram regulares, possuindo propriedades como lados paralelos e ângulos retos .

Os pesquisadores chamaram isso de “efeito de regularidade geométrica” e levantaram a hipótese - é uma hipótese frágil, eles admitem - que isso pode fornecer, como observaram em seu artigo, uma “assinatura putativa da singularidade humana”.

Com os babuínos, a regularidade não fazia diferença, descobriu a equipe. Vinte e seis babuínos - incluindo Muse, Dream e Lips - participaram deste aspecto do estudo, que foi conduzido por Joël Fagot, psicólogo cognitivo da Universidade de Aix-Marseille.

Os babuínos vivem em um centro de pesquisa no sul da França, sob a Montanha Sainte-Victoire (um dos lugares favoritos de Paul Cézanne), e gostam das cabines de teste e seus dispositivos de tela sensível ao toque de 19 polegadas. (Fagot observou que os babuínos eram livres para entrar na cabine de teste de sua escolha - havia 14 - e que eles eram “mantidos em seu grupo social durante o teste”.). Eles dominaram o teste de estranheza ao treinar com imagens não geométricas - escolhendo uma maçã, digamos, entre cinco fatias de melancia. Mas quando apresentados a polígonos regulares, seu desempenho entrou em colapso.

Petroglifos no Monte Bgo, Vale das Maravilhas, no sul da França. Foto: Stanislas Dehaene via The New York Times

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“Os resultados são impressionantes, e parece haver de fato uma diferença entre a percepção de formas por humanos e babuínos”, disse Frans de Waal, primatologista da Universidade Emory, por e-mail. “Se essa diferença de percepção equivale à ‘singularidade’ humana, teríamos que aguardar pesquisas sobre nossos parentes primatas mais próximos, os símios”, disse Waal. “Também é possível, como os autores argumentam (e rejeitam), que os humanos vivam em um ambiente onde os ângulos retos são importantes, e os babuínos não.”

Investigando ainda mais, os pesquisadores tentaram replicar o desempenho de humanos e babuínos com inteligência artificial, usando modelos de redes neurais inspirados em ideias matemáticas básicas sobre o que um neurônio faz e como os neurônios estão conectados. Esses modelos - sistemas estatísticos alimentados por vetores de alta dimensão, matrizes multiplicando camadas sobre camadas de números - combinaram com sucesso o desempenho dos babuínos, mas não o dos humanos; eles não conseguiram reproduzir o efeito de regularidade. No entanto, quando os pesquisadores fizeram um modelo turbinado com elementos simbólicos, ele replicou o desempenho humano de forma próxima.

Esses resultados, por sua vez, representam um desafio para a inteligência artificial. “Adoro o progresso em IA”, disse Dehaene. “É muito impressionante. Mas acredito que falta um aspecto profundo, que é o processamento de símbolos” - ou seja, a capacidade de manipular símbolos e conceitos abstratos, como o cérebro humano faz. Este é o assunto de seu último livro, How We Learn: Why Brains Learn Better Than Any Machine … for Now (Como aprendemos: Por que os cérebros aprendem melhor que qualquer máquina... por enquanto).

Para conhecer um triângulo

O matemático francês René Descartes calculou que “nunca poderíamos conhecer o triângulo geométrico através do que vemos desenhado no papel se nossa mente não tivesse a ideia dele em outro lugar”. Dehaene e Sablé-Meyer colocam esse sentimento na epígrafe de um novo estudo, atualmente em revisão, no qual eles tentam definir esse “outro lugar” cognitivo - oferecendo teorias e evidências empíricas do que “outro lugar” pode ser.

A partir de pesquisas originadas na década de 1980, eles propõem uma “linguagem de pensamento” para explicar como as formas geométricas podem ser codificadas na mente. E em uma reviravolta apropriadamente tortuosa, eles encontram inspiração nos computadores.

“Nós postulamos que quando você olha para uma forma geométrica, você imediatamente tem um programa mental para isso”, disse Dehaene. “Você entende, na medida em que tem um programa para reproduzi-lo.” Em termos computacionais, isso é chamado de indução de programa. “Não é trivial”, disse. “É um grande problema em inteligência artificial - induzir um programa a fazer uma determinada coisa a partir de sua entrada e saída. Nesse caso, é apenas uma saída, que é o desenho da forma.”

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A linguagem é muitas vezes considerada a qualidade que demarca a singularidade humana, observou Dehaene, mas talvez haja algo mais básico, mais fundamental.

“Estamos propondo que existem linguagens - múltiplas linguagens - e que, de fato, a linguagem pode não ter começado como um dispositivo de comunicação, mas sim como um dispositivo de representação, a capacidade de representar fatos sobre o mundo exterior”, ele disse. “É isso que buscamos.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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