A música ambiente não é um pano de fundo, é um convite para suspender o tempo

Diante da crise, nossa crítica se voltou para a música que exigia que ela abrisse mão do controle

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Por Isabelia Herrera e Sofia Crespo
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES LIFE/STYLE - Quando soube que minha mãe havia sofrido um derrame, o sentimento que veio à tona não foi o desespero, mas um impulso para resolver os problemas.

Primeiro, o jargão médico preencheu meu cérebro como uma fita adesiva: um acidente vascular cerebral devido à embolia da artéria cerebral média esquerda. Cinco miligramas de Eliquis e 50 miligramas de Losartan e mais 50 de Metoprolol, além de outros quatro comprimidos de manhã, ao meio-dia e à meia-noite.

Meu irmão e eu compilamos senhas para plataformas do seguro saúde, portais de pacientes e contas bancárias em uma entrada compartilhada do aplicativo Notes. Preenchemos a papelada para pagamentos de invalidez a longo prazo. Consultamos advogados, imaginando como lidar com o empregador de minha mãe, que ameaçou demiti-la se ela não voltasse ao trabalho.

Visuais inspirados em 'Being Here (Flowes the Universe)' de Laraaji.  Foto: Sofia Crespo via The New York Times

Um mês depois do derrame, na noite anterior ao meu aniversário de 29 anos, sofremos um acidente que destruiu o carro da minha mãe. Na esperança de que ela pudesse dirigir novamente, dei a ela uma parte de minhas economias para comprar um carro novo.

O derrame não foi a única crise. Havia o pavor da próxima eleição presidencial; o arrasto incessante da pandemia; a expectativa de concluir o mestrado enquanto cuidava da minha mãe; e a realidade de que, como família imigrante, todo nosso sistema de apoio estava em casa, na República Dominicana. Na maioria das vezes, meu irmão e eu estávamos sozinhos.

Então, eu pesquisei no Google. Eu fiz playlists.

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Eu chamei uma delas de “se você precisar respirar”, escrito com letras minúsculas. Eu a preenchi com os tons de sintetizador de foco suave e loops obliterantes de música ambiente. Percorri o Spotify e me deparei com dezenas de playlists projetadas para regulação do humor e autocuidado: Peaceful Indie Ambient, Lo-Fi Cool Down, Ambient Chill. No Headspace, um aplicativo de meditação que custa US$ 69,99 (cerca de R$ 352) por ano, encontrei paisagens sonoras selecionadas pelo sábio produtor Madlib e pelo compositor John Legend destinadas a evocar atmosferas relaxantes e propiciar dias produtivos de trabalho.

Ficou claro que eu não estava sozinha. Nos últimos anos, a música ambiente tornou-se um bálsamo escapista para um planeta que lida com a morte em massa, a instabilidade política, a ansiedade climática, a cultura incessante do excesso de trabalho e a dissociação que essas condições causam. O mundo da tecnologia foi rápido em lucrar: em 2017, a crítica Liz Pelly escreveu sobre a proliferação das playlists “para relaxar” do Spotify, referindo-se a isso como “uma ambição de transformar todas as músicas em papel de parede emocional”. Esta é a música de elevador do capitalismo tardio, uma anestesia leve do cérebro para pacificar a mente.

Mas nos meses que se seguiram ao derrame de minha mãe, depois que voltei para seu apartamento de um quarto em Chicago, a música ambiente não era apenas um ato de autocuidado mercantilizado. Ouvi-la exigia que eu abandonasse o controle. Fazia com que eu dispensasse o tempo progressivo. Ela me forçou a desacelerar e enfrentar o colapso.

No topo de “se você precisa respirar” está Iniziare de Alessandro Cortini. Cortini, um músico italiano que começou como guitarrista, tecladista e baixista do Nine Inch Nails, também é conhecido por sua música de sintetizador fantasmagórica e narrativa. Em Iniziare, Cortini prende o tempo.

Um único tom de sintetizador, inicialmente ligado à terra, flutua a 40.000 pés no ar, espiralando em fragmentos astrais. Ondas de feedback eletrônico se transformam em picos e vales de ecos esticados, decaídos em abismos ocos. O tempo torna-se suave, flexível, desobediente. Ao ouvi-la, sou forçada a fechar os olhos, a sentir como o som viaja pelo corpo, mudando de forma para um desvio não linear. Eu me sinto desapegada de qualquer versão determinista do futuro. Nesse lugar entre a luz e a escuridão, prazer e dor existem na mesma medida. Eu experimento toda a fragmentação da vida, os lembretes do trauma e da incerteza com os quais acordei nos últimos quatro meses. Aqui, eu me recuso a deixar o luto se tornar autodefinição: eu vivo livre da velocidade da emergência.

A música ambiente sempre conteve uma espécie de conhecimento subterrâneo. O músico e crítico britânico David Toop, que escreveu Ocean of Sound, o texto de 1995 que define essa música, recentemente argumentou que ela se separou das qualidades filosóficas sugeridas durante sua gênese na década de 1970. Naquela época, ela representava um protocolo alternativo para ouvir e fazer música. Em um ensaio de 2019, Toop se refere a ela como uma forma musical “comprometida (implícita ou explicitamente) com um engajamento com interpretações e articulações de lugar, ambiente, escuta, silêncio e tempo”. Em sua opinião, é a música que inspira “um estado de espírito sintonizado com a inclusão”, ao invés da “remoção”.

E, no entanto, a visão dominante da música ambiente hoje é uma inversão caricatural dessas aspirações. Em uma indústria de bem-estar multibilionária, plataformas de streaming e aplicativos de meditação enquadram a música ambiente como música de fundo - algo para ouvir e consumir de forma independente. É música de spa e ioga, ou sons para um sono tranquilo e repousante. Em vez de abraçar o potencial da música ambiente - sua capacidade de suavizar barreiras e afrouxar ideias de som, política, temporalidade e espaço - ela tornou-se instrumentalizada, diminuída como som de pano de fundo.

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A pioneira da música experimental Pauline Oliveros previu como uma abordagem sensorial da música e da audição poderia cultivar o pensamento politicamente dinâmico. Ela passou a vida desenvolvendo uma teoria da escuta profunda, uma prática que promove uma atenção radical. Nesta abordagem, há uma distinção entre ouvir e escutar; a primeira é uma consciência superficial do espaço e da temporalidade, e a segunda é um ato de foco imersivo.

Eu pratiquei a escuta profunda com minha playlist “se você precisar respirar”, especialmente com a composição Being Here do inovador da new age Laraaji. É difícil identificar exatamente quando Being Here te atinge: talvez seja na marca de 10 minutos, ou 15 minutos ou até mesmo em seu beatífico final de 25 minutos. Laraaji, que vem fazendo música desde o final dos anos 1970, produz glossolalia aural - detritos melódicos divinos e luminescentes. Ouvindo sua música, sinto um abraço silencioso de sua visão do presente, notas refratando como a luz do sol acariciando as águas azuis do oceano. Esta é a música que gira nos ouvidos, transformando-se em um Elísio imaginado, interrompendo o tempo e o espaço. Não é apenas cenário, não é um simples bálsamo para uma dor incomensurável.

Para alguns, as lições de Being Here podem lembrar algum tipo de prática vazia de mindfulness, um conceito muitas vezes desviado como um chavão de bem-estar. Esse conceito muitas vezes nos diz para “estar presente” para que possamos nos otimizar e funcionar melhor como trabalhadores e indivíduos, em vez de humanos que fazem parte de uma comunidade.

Mas Being Here não é uma demanda para recarregar para a produtividade. Ela me fez esquecer o looping do tempo, me desvencilhar de qualquer tipo de cronologia preditiva - sobre a recuperação de minha mãe, mas também sobre sobreviver a um estado contínuo de dificuldades. Estar aqui e desacelerar não era sobre inatividade ou falta de energia. Era sobre me libertar do imperativo de recuar diante da precariedade. Foi uma ruptura insurgente no tempo - um chamado para mergulhar na realidade de um presente catastrófico e me preparar para fazer algo a respeito.

Não vou fingir que a música ambiente é algum tipo de solução abrangente para um mundo que luta com a morte, a guerra e a devastação. Mas me pergunto como, em uma escala infinitesimal, ouvi-la atentamente pode nos libertar da lógica da ação precipitada e individualista. Quando me obrigo a ouvi-la atentamente, ouço uma recusa em analisar, julgar e agir com imediatismo. Em seu apelo para suspender o tempo, a música carrega o potencial de forçar a pausa na velocidade punitiva que acompanha o desastre, que rouba nossa atenção e predetermina um futuro fixo. Eu ouço a promessa de agir deliberadamente, coletivamente e com cuidado, para abraçar a observação e a ação intencionais - a prática duradoura de uma vida. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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