A música de Kae Tempest rompe barreiras

O prolífico quarto álbum do poeta e músico britânico, ‘The Line Is a Curve’, é pessoal de novas formas

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Por Imogen West-Knights
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - LONDRES - “Vou entrar nessa e vejo vocês do outro lado”, disse Kae Tempest ao público em um show intimista no início de abril. Nos 30 minutos seguintes, Tempest - pessoa não binária que usa pronome neutro - apresentou seu novo álbum, The Line Is a Curve (A linha é uma curva), a cappella. De pé no palco do Rough Trade East, fechou os olhos e balançou o corpo, como se estivesse em transe, ao ritmo das palavras, ocasionalmente enxugando o suor de seu cabelo curto. O público contava com 300 pessoas em silêncio, paradas, como se compartilhassem o mesmo devaneio. “Durante a apresentação, quero conduzir essa força que toma conta do salão. Quero que a gente entre em sintonia e possa se conectar”, afirmou em uma entrevista recente em um café perto de sua casa, em Catford, no sudeste de Londres.

O rapper não-binário Kae Tempest apresenta seu último álbum 'The Line Is a Curve', em Londres. Foto: Alex Ingram/The New York Times

Esse impulso tem guiado Tempest desde que começou a fazer rap com o pseudônimo Excentral the Tempest, ainda na adolescência. Agora, aos 36 anos, é uma figura influente no cenário londrino da poesia e da palavra falada, depois de ter criado uma obra formidável que inclui poesia, teatro, livros de ficção e não ficção e álbuns que apresentam letras faladas em uma variedade de cenários atmosféricos, dois dos quais foram indicados para o Mercury Prize.

The Line Is a Curve, lançado em abril, é o quarto álbum de Tempest, e talvez sua busca mais pessoal por conexão até o momento. Suas gravações e seus poemas anteriores ofereceram retratos da vida interior de personagens contemporâneos do sul de Londres e de antigos deuses gregos. The Line Is a Curve é todo cantado na primeira pessoa: “Amo quando vejo você”, Tempest canta sobre sintetizadores em Salt Coast; outra faixa apresenta um recado de voz que Tempest enviou a um amigo, entoando: “Não pode haver cura até que tudo esteja quebrado; quebre-me”. O refrão da primeira faixa é “ser conhecido e amado”.

A capa do álbum é a primeira em oito anos a apresentar uma foto de Tempest. Dan Carey, que trabalhou como produtor em The Line Is a Curve e em todos os álbuns solo de Tempest, comentou que, comparado aos discos anteriores, o novo álbum “parece um pouco mais terno, com um pouco mais de aceitação. Acho que Kae percebeu muita coisa a respeito de si mesmo”.

Recentemente, Tempest começou a compartilhar mais de sua intimidade. Em agosto de 2020, revelou ser não binário e mudou seu primeiro nome. Em um café no sul de Londres, seus olhos brilhavam enquanto falava desse novo processo de autoaceitação: “Sinto alívio. As pessoas trans são lindas; portanto, por que eu tinha medo dessa pessoa em mim? Somos gente abençoada. Agora eu talvez seja capaz de me ligar mais completamente a mim mesmo, mas estive em uma jornada em direção à conexão durante a vida inteira.”

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Ian Rickson, que dirigiu uma das peças de Tempest, uma adaptação de Filoctetes, de Sófocles, chamada Paradise, no Teatro Nacional de Londres no ano passado, descreveu isso como um elemento “xamânico” do trabalho de Tempest. Quando Tempest ganhou o prestigioso Prêmio Ted Hughes de poesia aos 26 anos, por uma peça de poesia performática ao vivo chamada Brand New Ancients (Novos antigos), ainda havia uma cisão “entre o que era percebido como ‘literário’ e o que era palavra falada/performance, visto como algo ‘não literário’”, explicou Maura Dooley, uma das juradas daquele ano, por e-mail. Segundo Bridget Minamore, poeta e amiga, Tempest foi fundamental para superar essa divisão.

Nos anos seguintes, Tempest teve muitos imitadores na cena da palavra falada. “Há quase uma mitologia em torno deles. Quando assistimos a Kae, às vezes ficamos com vontade de nos rasgar em dois”, disse Minamore, atribuindo isso à combinação de energia e vulnerabilidade de Tempest no palco.

Capturar essa energia ao vivo em uma gravação foi central para os objetivos de Tempest e Carey em The Line Is a Curve. Tempest gosta de gravar o álbum inteiro em um take, “para que todo mundo passe pela mesma coisa ao mesmo tempo”.

Mas, para este álbum, Tempest fez algo ainda mais cru e ousado, gravando cada faixa vocal três vezes, ao vivo em um teatro, para diferentes públicos. A primeira gravação contou com três adolescentes; a segunda, com Minamore, que tinha 30 anos; e a última incluiu uma pessoa de 78 anos. “Em apresentações ao vivo como essa, sua fisiologia reage a outra pessoa; há coisas que a voz faz em comunicação real. Isso faz você ir além das letras que escreveu. As palavras se tornam uma ponte”, observou Tempest.

Durante a apresentação a que Minamore assistiu, “sorri muito enquanto ouvia”, contou ela, observando a leveza do disco e a sensação de “se deixar levar”. No fim, os takes gravados antes de Minamore foram os que Tempest usou para quase todo o álbum. O LP apresenta vocais adicionais de Grian Chatten, de Lianne La Havas e Fontaines D.C., e foi produzido por Rick Rubin.

A beleza e a simplicidade da interação humana sempre serviram de inspiração para Tempest, especialmente no sudeste de Londres, onde viveu praticamente a vida toda. No café, seu olhar se desviou para fora da janela, acompanhando os movimentos dos transeuntes. “A maior parte do que realmente me ocorre no processo de criatividade são observações, pessoas. Mesmo agora, adoro ver as pessoas vivendo.”

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Carey se lembrou do dia em que esperou na fila por um táxi em um aeroporto com Tempest. À frente, alguns homens estavam causando atraso ao tentar enfiar um aparelho grande em um táxi. Carey se irritou. “Mas Kae só se virou para mim e disse: ‘Amo as pessoas, só de vê-las tentando fazer tentando fazer isso.’ Em momentos como esse, Kae é capaz de encontrar alguma coisa bonita em uma situação que a maioria das pessoas não perceberia”, afirmou, rindo.

O cotidiano não é a única coisa que alimenta a arte de Tempest. Seu livro de não ficção On Connection (Em conexão), de 2020, fala das noções junguianas de espírito da época, o Zeitgeist, e o lugar da alma no qual a criatividade emerge. Falando dessas ideias no café, os olhos azuis de Tempest eram grandes e sérios por trás das lentes grossas de seus óculos. “Sinto que existo demais nas profundezas. Às vezes tenho de voltar.”

“Tempest faz isso falando de rappers aleatórios nas paradas e nos reality shows do Reino Unido”, disse Minamore; Tempest é um grande fã de MasterChef. “Às vezes minha mente funciona com força total, pensando em um milhão de coisas, tentando escrever personagens, enredo, narrativa, rimas, mas outras vezes só quero sentar no pub, falar bobagem e rir”, comentou Tempest.

Tempest embarca em uma turnê europeia em maio e descreveu a sensação de um bom show como “ir ao espaço”: “É realmente físico; parece que estamos presos a este momento e um ao outro quando tudo está acontecendo; é como se todos estivéssemos respirando no mesmo ritmo.”

No Rough Trade East, Tempest conseguiu decolar. “Parecia tão pessoal, como se Tempest estivesse falando com todo mundo individualmente. Eu estava em prantos durante a maior parte da apresentação”, contou Rob Lee, fã de 28 anos, depois do show.

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