PUBLICIDADE

‘Às vezes fico chorando no quarto’, diz atleta ucraniana que precisou sair do país para competir

Medalhista olímpica do salto em altura da Ucrânia, com medo de voltar para casa por causa da guerra, chega ao campeonato mundial com o coração pesado – e com expectativas de vencer

Por Jeré Longman
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Era um local incomum para promover uma competição de salto em altura - o estacionamento de um shopping center no fim de junho. Clientes com sacolas de compras paravam brevemente para olhar. Em pé atrás de uma grade, um grupo de espectadores, incluindo ucranianos refugiados de guerra, tirava um momento para aplaudir. A decoração incluía estátuas pintadas de dourado, congeladas em poses olímpicas antigas. Ao sul, carros e caminhões zuniam na rodovia em direção à Eslováquia.

A atleta ucraniana Yaroslava Mahuchikh, 20, durante competição em Brno, na República Checa, em junho deste ano. Foto: David Payr/The New York Times

PUBLICIDADE

Não era um encontro tradicional, mas nada tem sido convencional ultimamente para a ucraniana Yaroslava Mahuchikh, de 20 anos, medalhista olímpica de bronze deslocada de guerra, favorita para a medalha de ouro no campeonato mundial de atletismo.

Em 24 de fevereiro, Mahuchikh acordou sobressaltada pelo tremor das explosões em sua cidade natal, Dnipro, na região centro-oriental da Ucrânia: a Rússia iniciara sua invasão. Uma explosão, registrada em vídeo, produziu uma bola de fogo no céu escuro, enquanto o aeroporto e as instalações militares da área eram atacados.

Mahuchikh ligou para os pais e para a treinadora, depois viajou até a casa desta, na cidade próxima de Sukhachivka, supondo que lá estaria mais segura. Elas estabeleceram uma rotina, correndo para o porão quando soavam as sirenes de alerta e treinando quando possível em um ginásio coberto. Logo depois, deixaram o país. Por quanto tempo, ninguém sabia.

No dia cinco de março, Mahuchikh e o namorado, além de sua treinadora, com o marido e o filho, começaram uma odisseia de três dias de carro até Belgrado, na Sérvia, para competir no campeonato de atletismo em pista coberta.

Durante a competição mundial, Mahuchikh usou delineador amarelo e pintou as unhas de amarelo e azul, as cores nacionais da Ucrânia, em um ato de respeito e resistência. E, apesar da trágica perturbação causada pela guerra e do sofrimento emocional de deixar para trás a família, conquistou o primeiro lugar e recebeu aplausos acalorados.

“O resultado demonstrou que a Ucrânia é um país poderoso e independente que não precisa da Rússia”, declarou a treinadora de Mahuchikh, Tetiana Stepanova, de 56 anos, durante a competição de salto em altura em Brno, segunda maior cidade da República Checa, duas horas a sudeste da capital, Praga.

Publicidade

Os esportes se tornaram símbolo de união, triunfo, resiliência e perseverança para a Ucrânia. Sua seleção de futebol masculino foi acolhida internacionalmente na última primavera setentrional ao tentar corajosamente se classificar para a Copa do Mundo do Catar, que será disputada em dezembro, e perder por pouco. “Protejo a Ucrânia no atletismo, alguns a protegem nas artes; estamos todos contribuindo”, afirmou Mahuchikh.

Entretanto, as exultantes estatísticas esportivas oferecem apenas uma leve distração das sombrias estatísticas da guerra. Mesmo segundo estimativas mais conservadoras, dezenas de milhares de soldados e civis morreram na Ucrânia. As pessoas estão escondidas em porões, e as crianças agora brincam com partes de foguetes, contou Stepanova com uma eloquência pesarosa.

Pelo menos por enquanto, Mahuchikh sente que voltar para a Ucrânia seria arriscado demais, e, ainda que voltasse, seria muito difícil viajar com a frequência necessária para participar do circuito internacional de atletismo. Ela permaneceu na Alemanha e na Turquia durante meses antes de viajar à Califórnia no início de julho a fim de se preparar para o campeonato mundial.

Sua mãe, sua irmã e sua sobrinha deixaram a Ucrânia e se juntaram a ela na Alemanha, mas o pai e a avó continuam em Dnipro, que se tornou um centro de assistência humanitária, resistência militar e fileiras de covas recém-abertas, como uma lavoura desolada. A cidade ainda não foi totalmente destruída, como Mariupol e outras cidades do leste, mas alvos civis foram bombardeados por mísseis e o aeroporto foi destruído.

O atleta ucraniano Nikita Chesak e sua namorada Hana Romankova, com uma bandeira ucraniana: juntos, eles aplaudiram a Yaroslava Mahuchikh. Foto: David Payr/The New York Times

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Mahuchikh relatou que, quando uma tempestade recente trouxe fortes trovões, sua avó, assustada, achou que fosse o estrondo dos bombardeios. Outras atletas do salto em altura que se juntaram a ela na República Checa em junho trouxeram a própria história, de partir o coração.

Maryna Kovtunova, de 15 anos, é a campeã ucraniana que se tornou protegida de Mahuchikh. Ela disse que, quando fugiu de Mariupol com os pais em março, deixando para trás o apartamento destruído, uma bala alvejou o carro da família, aparentemente disparada por um atirador de elite. O tiro atingiu o vidro traseiro, ricocheteou e se alojou no para-brisa. No celular de Kovtunova há uma foto dela segurando a bala, a ponta inclinada lembrando vagamente o chifre de um rinoceronte, com a seguinte legenda: “Estou viva, mas essa bala quase me atingiu. Eu me abaixei a tempo.”

Segundo Kateryna Tabashnyk, de 28 anos, o apartamento da família na cidade oriental de Kharkiv foi atingido por um foguete que feriu seu sobrinho de oito anos. O menino foi hospitalizado, e um de seus rins precisou ser removido. Ela está morando na Espanha, que, assim como outros países europeus, vem oferecendo apartamentos e instalações de treinamento para ucranianos exilados. “O mais difícil foi ter de me afastar deles por muito tempo, porque não tive a possibilidade de trazê-los comigo”, afirmou Tabashnyk por meio de um intérprete.

Publicidade

Mahuchikh e Stepanova, sua treinadora, partiram em março para sua odisseia até Belgrado, levando uma carta digital da federação ucraniana de atletismo que explicava seus motivos para deixar o país, mas tiveram de esperar durante cinco horas na fronteira oeste com a Moldávia, por causa do trânsito e da verificação de seus documentos de viagem. Mahuchikh dormiu no carro ao longo da viagem de 72 horas até a Sérvia, que atravessou a Moldávia e a Romênia. Exceto pelas paradas para comer e reabastecer, o motorista, Serhii Stepanov, marido de Stepanova, cochilou apenas três horas. Como ficou acordado tanto tempo? Dando de ombros, Stepanov disse, com um sorriso: “Cinco Red Bulls.”

No dia 22 de junho, Mahuchikh competiu na República Checa em um dos torneios mais peculiares da Europa, o Brnenska Latka, que significa algo como “Sarrafo de Brno”. A competição é organizada há 25 anos, geralmente dentro do shopping center Olympia (por isso as estátuas vivas portando um dardo e um disco). Este ano, pela primeira vez, foi promovida no estacionamento do shopping.

Em alta
Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

Um dos organizadores, Simon Zdenek, era apenas um menino em 1968, durante a era comunista, quando assistiu de mãos dadas com o pai à chegada dos tanques soviéticos que destruíram um período de reformas na Tchecoslováquia conhecido como Primavera de Praga. “Nunca se esqueça disso”, seu pai lhe disse; e ele nunca se esqueceu. Na véspera da competição, dirigiu uma hora e meia até o aeroporto de Viena para buscar Iryna Gerashchenko, a estrela ucraniana itinerante. “Compreendemos o que eles estão vivendo e queremos ajudá-los.”

Dois irmãos de Dnipro, Yegor e Nikita Chesak, atletas de elite da corrida com barreiras e dos 400 metros rasos, que moram agora temporariamente perto de Brno, trouxeram uma bandeira nacional azul e amarela para torcer por Mahuchikh e por outros saltadores ucranianos. Serhiy Slisenko, de 25 anos, viajou 13 ou 14 horas de ônibus de Lviv, na Ucrânia ocidental, para competir no salto em altura masculino, e fez o melhor salto ao ar livre de sua carreira: “É muito importante fazer o possível para mostrar que somos ucranianos e podemos dar nosso melhor, mesmo nestas circunstâncias difíceis.”

Mahuchikh usou delineador azul e amarelo e um pingente no formato do mapa da Ucrânia. Gerashchenko usou uma fita azul e amarela no cabelo, e um anel das mesmas cores. Um pequeno grupo de espectadores ucranianos, deslocados e morando em Brno, torcia para elas, dizendo: “Salte, salte, salte, vamos lá, você consegue!”

O entusiasmo e a proximidade da pequena multidão, em meio ao panorama da guerra, deram à competição uma energia de urgência. Mahuchikh prevaleceu com um salto de 2,3 metros, o melhor do mundo este ano, as costas e as pernas altas como o telhado de uma casa no momento em que a atleta atingia a altura vencedora.

Os atletas russos, incluindo a atual campeã olímpica do salto em altura, Mariya Lasitskene, estão banidos dos campeonatos mundiais por conta da invasão. Mahuchikh considerou essa exclusão justa e acrescentou: “A vida humana é mais importante do que qualquer competição.”

Publicidade

Ela espera que, no próximo outono setentrional, já seja seguro retornar a Dnipro para ver o pai e a avó. Mahuchikh sente que é seu dever contar sua história e a de seu país, mas tem apenas 20 anos e nem sempre tem sido fácil ser atleta e embaixadora durante a guerra. “Mentalmente, é muito difícil. Preciso me concentrar na competição e no treinamento, mas às vezes fico chorando no quarto. Acho que agora todas as ucranianas estão experimentando a mesma coisa: todas querem ir para casa, querem ver o marido e os pais.”

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.