Com verdade e justiça aparentemente em disputa, histórias de anti-heróis ainda fazem sentido?

Desde os primórdios de Batman, a cultura pop abraçou a figura que vive na fronteira entre a lei e a ilegalidade; com verdade e justiça aparentemente em disputa, essas histórias ainda fazem sentido?

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Por Maya Phillips
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Na popular série da Amazon Prime Video The Boys, Hughie, um jovem irreprimivelmente sério que frequenta o grupo-título de desajustados, é forçado a decidir - várias vezes - se está disposto a vender sua alma ao diabo em troca de justiça. E por “diabo” quero dizer Billy Butcher, o líder implacável e de boca suja da equipe de soldados e assassinos dedicados a lutar, extorquir, torturar e matar super-heróis.

Desde os primórdios do Batman, a cultura pop tem abraçado a figura que vive na fronteira entre a lei e a ilegalidade.  Foto: Taylor Callery/The New York Times

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Hughie é nosso homem comum - nosso protagonista bem-intencionado que se junta ao grupo de Butcher e serve como sua bússola moral. Enquanto Butcher alimenta ferozmente sua vingança contra os “supers”, Hughie tenta lutar por justiça sem derramar mais sangue.

No mundo de dentro para fora de The Boys, que acaba de encerrar sua terceira temporada, Hughie descobre que não há absolutos morais. Os super-heróis que são os alvos de Butcher? Assassinos, estupradores e (no semblante sorridente de Homelander) um proto-fascista. Entendimentos claros de quem é um herói e quem é um vilão voam - como um pássaro, como um avião ou como o Super-Homem - pela janela.

E com eles vai o arquétipo de longa data dos quadrinhos destinado a dividir a diferença: o anti-herói. O modelo antigo - o guerreiro pensativo e traumatizado de preto, que fica na linha entre o bem e o mal, por quem torcemos mesmo quando ele desce para a escuridão moral (e muitas vezes literal) - tornou-se uma paródia grosseira de si mesmo.

Nos mundos gerados pelos quadrinhos que, para o bem ou para o mal, dominam a cultura popular, os criadores tentaram ressuscitar o anti-herói, com graus variados de sucesso.

Há mais em sua luta do que capas esvoaçantes e máscaras no rosto. Os heróis dos quadrinhos refletem a moral de nossa sociedade; o anti-herói tornou-se um símbolo de nossa ética confusa e das contradições que abraçamos sob o pretexto de justiça.

‘Batman’ como beco sem saída

Como chegamos aqui? Precisamos falar sobre aquele bilionário com fetiche por morcegos - Batman, o anti-herói por excelência.

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É 1940, apenas alguns meses após sua estreia nos quadrinhos, e dois capangas estão fugindo em um caminhão. Nosso herói vai para seu Bat-avião: “Mas lá longe no céu, cuspindo a morte, Batman!” aparece em um painel. No próximo, ele faz uma careta do cockpit enquanto olha pela mira da metralhadora do avião.

“Por mais que eu odeie tirar a vida humana, temo que desta vez seja necessário!” ele insiste enquanto as balas voam. Ele é apenas uma ameaça para os criminosos de Gotham. Ele vai dobrar as regras, mas não vai quebrá-las.

A exagerada série de TV dos anos 1960 o transformou em um benfeitor bebedor de leite, respeitando normas sobre violência e ética da televisão infantil da época. Quando a franquia de filmes começou, os diretores Tim Burton e Joel Schumacher apresentaram a escura e extravagante Gotham. Ainda assim, seus retratos foram amarrados com humor lunático e ironia.

Na trilogia de filmes de Christopher Nolan, baseada no reboot do Cavaleiro das Trevas do escritor de quadrinhos Frank Miller, Gotham gradualmente desmorona, os escombros e a miséria são palpáveis, o impacto de uma cidade dominada pelo crime é significativo.

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Em três horas de dor apática, o opressivamente severo Batman, de Matt Reeves, que saiu nesta primavera do hemisfério norte, transformou seu herói em um bat-adolescente comicamente emo. Embora Bruce Wayne tenha ficado traumatizado ao testemunhar o assassinato de seus pais, o filme se concentra tão fortemente em suas expressões e birras desesperadas que sua dor parece meramente ornamental.

É por isso que as farpas de uma paródia como Lego Batman: O Filme atingiram seu alvo.

“Eu não falo sobre sentimentos, Alfred”, declara o Lego Batman enquanto é pego olhando tristemente para suas fotos de família. “Não tenho nenhum, nunca vi nenhum. Sou um vigilante e perseguidor noturno, combatente do crime e uma máquina de heavy metal.”

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A solução Jekyll-e-Hyde

No filme Venom, de 2018, Eddie Brock é um obstinado repórter investigativo que perde seu emprego (e seu relacionamento) por se recusar a comprometer seus ideais enquanto relata os atos ardilosos de uma grande corporação. Então ele é infectado por Venom, um ser alienígena senciente que controla seu corpo e lhe dá habilidades sobre-humanas. Venom quer matar e comer pessoas; Eddie quer ajudá-las.

Venom é um dos vários filmes e séries de TV recentes que transformam o anti-herói em uma figura estilo Jekyll-e-Hyde, preso entre suas piores inclinações e melhores intenções.

Em Morbius este ano, o personagem-título é um cientista ganhador do Prêmio Nobel em busca de uma cura para sua doença crônica. Ele combina seu DNA com o de um morcego e se torna saudável, mas também um vampiro humano selvagem. Ele se arrepende de sua pesquisa, percebendo que se transformou em um monstro. No entanto, quando seu melhor amigo rouba um pouco do soro para si mesmo, ele se transforma em uma fera ainda mais cruel que Morbius deve combater.

Esse é outro truque para manter o anti-herói em jogo: inclua alguém pior que nosso protagonista. A moralidade é relativa, então pelo menos por um momento, enquanto houver vilões piores no mundo, podemos ter algo que se assemelhe a um herói.

Questões de riso

Outra maneira pela qual a indústria cultural manteve os anti-heróis populares é amarrando suas histórias com uma dose de humor muitas vezes autodepreciativo. Deadpool, Arlequina e Pacificador - nos filmes e séries de TV construídos em torno deles - quebram as regras e matam desenfreadamente, mas ainda salvam inocentes.

O tempo todo eles se distraem com missões secundárias malucas, fazem amizade com companheiros estranhos e se enfeitam de forma narcisista. Nós rimos porque eles permanecem plenamente conscientes das armadilhas da adoração de heróis e da noção ridícula de um herói mau; ou eles abraçam a área cinzenta entre o bem e o mal ou quase a apagam completamente, reconhecendo que o mundo raramente é tão simples.

O Pacificador, um personagem que apareceu no filme de James Gunn de 2021 O Esquadrão Suicida e este ano ganhou sua própria série derivada na HBO Max, estrelado por John Cena, é um herói estúpido e misógino estilo Capitão América que luta por justiça - mesmo que isso signifique matar mulheres e crianças.

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Em O Esquadrão Suicida, seu companheiro de equipe Bloodsport chama a atenção para as inconsistências no código moral do Pacificador: “Acho que a liberdade é apenas sua desculpa para fazer o que quiser”. E na série, outros personagens apontam seus preconceitos gritantes, como o fato de que a maioria dos “bandidos” que ele enfrenta são pessoas não brancas.

Existe realmente alguma diferença entre um herói e um anti-herói se todos estão criando regras enquanto avançam?

Quando os fãs dão as ordens

Em uma foto amplamente vista dos tumultos no Capitólio de 6 de janeiro, um Proud Boy pula a grade na câmara do Senado; em seu colete, impresso sobre uma imagem da bandeira americana, há uma caveira branca.

Este é o logotipo do popular personagem de quadrinhos conhecido como O Justiceiro.

O Justiceiro foi apresentado em três filmes live-action e, mais recentemente, em uma série de TV da Marvel estrelada por Jon Bernthal. Ele é um fuzileiro naval que se tornou vigilante que começa uma guerra cruel contra o crime depois que sua família é morta pela máfia. Assassinato, tortura, extorsão - os métodos do Justiceiro fazem os piores estrangulamentos de Batman parecerem tapas brincalhões.

Ele também é o personagem que deixa mais claro que, se não for tratado com cuidado, a ambiguidade e a história de fundo solidária concedida a um anti-herói violento podem oferecer cobertura no mundo real para ações desprezíveis.

Durante anos, policiais e militares abraçaram o personagem como um homem de ação habilidoso. Mas, mais recentemente, ele foi adotado pelos Proud Boys, de extrema-direita, a imagem do crânio também apareceu no comício nacionalista branco de 2017 em Charlottesville, Virgínia. Tanto Bernthal quanto o criador do personagem, Gerry Conway, repreenderam publicamente os fãs da direita alternativa que anunciaram o Justiceiro como um herói e o adotaram como modelo de justiça.

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Na verdade, este ano a Marvel Comics transferiu oficialmente o Justiceiro para o lado negro; ele agora é um executor em The Hand, um sindicato subterrâneo de supervilões.

The Boys é especialmente perspicaz nesse dilema, satirizando explicitamente fandoms tóxicos. À medida que os chamados heróis ficaram ainda mais descarados nesta temporada, mentindo e cometendo crimes em público, seus fãs ficaram mais apaixonados por eles. O que costumava parecer uma comunidade de fãs engajada foi pervertido em um movimento fascista incipiente.

Para onde ‘The Boys’ pode nos levar

Nos quadrinhos originais Boys nos quais a série de TV é baseada, todos são igualmente corruptos e igualmente punidos. É uma visão completamente niilista.

A versão para a TV, agora que temos três temporadas, é mais otimista, afirmando que as pessoas são tão boas quanto se desafiam a ser, perdoáveis quando reconhecem seus erros.

As categorias de herói e vilão - e, sim, anti-herói - não funcionam em The Boys, e é por isso que a série é tão cativante. Ficamos com indivíduos complexos rompendo com os arquétipos simples em que esses scripts costumam colocá-los.

Esses rótulos certamente estão nos decepcionando, e não apenas no mundo dos quadrinhos. Contos de heróis e vilões parecem, agora, como coisas de fábulas. Tiroteios em massa, mudanças climáticas, direitos humanos, direitos das mulheres - cada uma dessas coisas foi distorcida em uma narrativa de certo e errado que atende às necessidades do contador de histórias, seja o político, o juiz, o eleitor, a mídia.

Mais ou menos na metade de The Boys, um super benfeitor tenta convencer uma capanga corporativa corrupta a fazer a coisa certa, mas ela responde, inquieta, que não tem superpoderes.

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Como ela pode ajudar a salvar o dia? O herói responde: “Você não precisa de poderes. Você só precisa ser humana.”

Esqueça as capas, as máscaras e os poderes. Precisamos de humanos - sendo bons, sendo maus. Quanto aos heróis? São eles que cometem erros e os expiam, que tentam - e falham, mas ainda tentam - permanecer honestos em um mundo destruído. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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