Pavilhão de povo indígena na Bienal de Veneza mostra uma ‘noção diferente de nação’

Em um evento geralmente organizado em âmbito nacional, artistas da etnia Sámi do Círculo Polar Ártico têm seu próprio espaço

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Por Lisa Abend
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THE NEW YORK TIMES LIFE/STYLE - OSLO, Noruega - Neste momento, muitos membros do Sámi, um dos grupos indígenas mais antigos da Europa, estão embarcando em uma migração de primavera, movendo os rebanhos de renas dos quais seu sustento e cultura dependem para áreas de pastagem principalmente ao norte do Círculo Polar Ártico. Mas este ano, alguns deles estão indo na direção oposta. Eles vão para a Itália, onde pela primeira vez, um pavilhão nacional na Bienal de Veneza foi inteiramente dedicado aos artistas Sámi.

Artistas do Pavilhão Sámi: Máret Ánne Sara, Anders Sunna e Pauliina Feodoroff; É a primeira vez que a Bienal monta um espaço para a etnia indígena europeia.  Foto: Marta Buso/OCA via The New York Times

A Bienal, provavelmente o evento de arte mais prestigiado do mundo, foi aberta ao público no último domingo, 23 e fica até 27 de novembro. Ela já incluiu artistas indígenas antes. Mas em uma exposição organizada em linhas nacionais, a decisão de dedicar um pavilhão inteiro a pessoas cuja identidade transcende as fronteiras territoriais há muito impostas a elas é uma forte afirmação política.

Normalmente, Finlândia, Noruega e Suécia compartilham um espaço na Bienal conhecido como pavilhão nórdico. Este ano, ele foi renomeado como Pavilhão Sámi, em um gesto de reconhecimento das três nações que muitos Sámi veem como seus colonizadores.

Jolene Rickard, membro da Nação Tuscarora e professora de história da arte na Universidade Cornell especializada em arte indígena, disse que a decisão foi significativa. “Reconhece os Sámi como uma nação que existe além das fronteiras contíguas; abre espaço para uma noção diferente de nação”, ela disse.

Um povo tradicionalmente seminômade que soma cerca de 80.000, os Sámi estão espalhados por cerca de 150.000 milhas quadradas nas partes do norte da Finlândia, Noruega, Suécia e Península de Kola, na Rússia. Nos séculos 19 e 20, os governos desses países suprimiram as línguas Sámi e forçaram sua assimilação cultural, desnudando as florestas onde viviam e caçavam e abrindo suas terras para assentamentos.

Nas últimas décadas, os Sámi lutaram - muitas vezes sem sucesso - para proteger suas terras contra a extração de minerais e madeira, suas rotas migratórias do desenvolvimento e suas práticas tradicionais de pastoreio de renas do controle estatal.

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E embora os Sámi tenham vivido no norte da Escandinávia desde muito antes da chegada dos vikings, eles têm pouca representação na cultura nórdica. Katya García-Antón, diretora do Office for Contemporary Art Norway, uma organização sediada em Oslo que supervisiona o pavilhão nórdico, disse que notou essa ausência pela primeira vez quando se mudou de Londres para a Noruega em 2014. “Pude ver que havia uma enorme lacuna, uma divisão definitiva entre os Sámi e os noruegueses”, ela disse. “Então eu pensei que esta parece ser uma área onde nós, como uma organização, poderíamos tentar criar pontes.”

Pauliina Feodoroff, artista Sami e diretora teatral da Finlândia.  Foto: Laura Malmivaara via The New York Times

O Pavilhão Sámi, que teve a curadoria de García-Antón em conjunto com a estudiosa Sámi Liisa-Rávná Finbog e a artesã e ativista Sámi Beaska Niillas, apresentará o trabalho de três artistas que também estão envolvidos no ativismo político.

“Esses artistas Sámi estão tentando viver suas vidas”, disse García-Antón. “Mas há obstáculos - obstáculos estruturais, obstáculos legislativos, obstáculos filosóficos - que não permitem que eles façam isso.” A arte, acrescentou, é “um lugar em que eles podem operar com muito mais liberdade do que podem se seguirem o caminho legal, ou mesmo o educacional”.

Máret Ánne Sara, uma artista Sámi da Noruega que mostrará suas obras no pavilhão, descreveu sua arte como “um protesto e um símbolo”. Quando seu irmão abriu um processo contra o governo norueguês em 2016 pelo abate de parte de seu rebanho, ela criou uma instalação do lado de fora do tribunal com 200 cabeças de renas sangrando. Uma escultura posterior, chamada Pile o’Sápmi, feita de crânios de rena, foi exibida na Documenta, outra prestigiada mostra de arte internacional, em 2017.

Sara se recusou a dar detalhes do trabalho que apresentará em Veneza, mas García-Antón disse que ele também incorporaria renas.

Conflitos legais também estão no centro das obras que outro artista Sámi, Anders Sunna, exibirá no pavilhão. Desde os seis anos, disse Sunna, que é da Suécia, ele queria ser artista e pastor de renas. Mas, acrescentou, “a coisa do artista está funcionando melhor no momento”.

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Nos últimos 50 anos, sua família esteve envolvida no que ele descreveu como uma batalha legal de Davi contra Golias com o Estado sueco pela decisão de retirar de sua família os direitos de pastoreio e realocar seus membros de sua casa tradicional.

“É como se eles estivessem tirando sua identidade”, disse Sunna sobre o conflito. “Eles estão tirando seu sustento. Eles estão tirando sua cultura.”

A escultura de Máret Ánne Sara, chamada "Pile o'Sápmi", feita de caveiras de renas, exibida na Documenta em 2017. Foto: Mathias Voelzke

A contribuição da artista performática e diretora de teatro Pauliina Feodoroff, a terceira criadora cuja obra irá para o pavilhão, é mais abstrata, mas não menos politicamente fundamentada. Embora inicialmente relutante em aceitar o convite, ela disse que foi convencida quando García-Antón argumentou que a Bienal de Veneza era um megafone que poderia amplificar o ativismo ambiental e indígena.

“O núcleo principal do meu trabalho é a sobrevivência das florestas”, disse Feodoroff, que vem da Finlândia. “E o maior ato de violência colonial contra os Sámi foi a extração industrial de madeira em nossas terras” que começou após a Segunda Guerra Mundial, ela disse. “Nossa terra virou da república” e as árvores “foram cortadas”.

Suas contribuições em Veneza incluirão performances ao vivo e gravadas.

Todos os três artistas expressaram a esperança de que seu trabalho na Bienal não apenas conscientizasse sobre as condições em que os Sámi vivem, mas também mudasse essas condições. Já há sinais de que os países nórdicos estão pelo menos mais atentos às questões: quando o novo Museu Nacional de Arte de Oslo abrir suas portas, em junho, por exemplo, a primeira obra que os visitantes encontrarão será o trabalho de Sara com as caveiras de rena que apareceu na Documenta.

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Rickard, a historiadora de arte, disse que, embora a experiência a tenha ensinado a ser cética, ela estava esperançosa de que a exposição na Bienal seria um passo significativo para a soberania Sámi.

“Não estou sugerindo que o pavilhão de Veneza se traduza em ganhos políticos reais”, ela disse. “Mas a arte é antecipatória. Pode gerar uma consciência de resiliência e sobrevivência que pode levar a uma renovação do espaço indígena”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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