Por que os adolescentes de ‘Euphoria’ ouvem Sinead O’Connor, Tupac e Selena

A trilha sonora maximalista e com músicas de várias épocas da série de sucesso da HBO não se preocupa com o realismo, embalando dezenas de músicas, do underground ao instantaneamente reconhecível

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Por Joe Coscarelli
5 min de leitura

THE NEW YORK TIMES LIFE/STYLE - A festa de aniversário de um colegial moderno, acompanhado por uma mãe embriagada sem regras domésticas, exceto a discrição, começa ao som de This Is How We Do It, de Montell Jordan, aquela relíquia indelével dos anos 1990. “Eu amo essa música!” a mãe grita, com um palavrão adicional.

Ao mesmo tempo, três adolescentes saem para roubar um pouco de bebida. Trademark USA de Baby Keem, um rapper em ascensão do momento, explode nos alto-falantes do carro.

Jules (Hunter Schafer), esquerda, and Rue (Zendaya) em um episódio de 'Euphoria'. Foto: Eddy Chen/ HBO

Não muito tempo depois, um pai problemático vasculha a jukebox de um bar gay, procurando por Kick do INXS, mas encontrando The Pinkprint de Nicki Minaj. Ele se contenta com uma dança lenta e nostálgica de Drink Before the War, de Sinead O’Connor, uma balada devastadora de 1987. De volta à festa de aniversário, uma garota bêbada em um maiô se derrete, acompanhando simultaneamente a mesma faixa, lançada muito antes dela nascer.

Para algumas séries de televisão, isso seria o equivalente a um episódio de grandes momentos musicais. Mas em Euphoria, a alucinação maximalista do ensino médio atualmente em sua segunda temporada na HBO, foi apenas um trecho de músicas e referências cuidadosamente selecionadas que, como a própria série, buscavam a ressonância emocional mais do que a precisão superficial.

Muitas vezes, acumulando algumas dezenas de faixas em uma única hora - do underground ao instantaneamente reconhecível, dos anos 1950 a 2020 – a série não faz saltos enfáticos, mas assemelha-se à confusão do TikTok de estímulos auditivos e visuais, saltando entre gêneros, épocas e humores.

Além de O’Connor e Keem, a série apresentou uma metamontagem de alusões à cultura pop em I’ll Be Here in the Morning, de Townes Van Zandt, além da estreia de uma nova música de Lana Del Rey e uma performance neo-gospel do cantor e produtor Labrinth, que também faz a trilha sonora da série.

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A parcimônia de bom gosto nunca foi o objetivo. “Não estávamos interessados em seguir essas regras”, disse Julio Perez IV, editor-chefe da série, que se lembrou de conceber sua “própria galáxia sônica” com o criador, escritor e diretor de Euphoria, Sam Levinson. “Estávamos interessados em muita música – música demais para alguns. A série, de certa forma, seria um musical.”

Uma colagem de flashbacks, devaneios, pesadelos e sequências rítmicas de videoclipes, Euphoria usa a interação entre sua trilha sonora eclética e a trilha sonora recorrente de Labrinth para criar uma “fantasia selvagem que mistura naturalismo cru com hiper-realismo”, disse Perez.

Jen Malone, a supervisora musical da série também supervisionou as músicas de Atlanta e Yellowjackets, onde um senso estrito de lugar e período guiam as escolhas. Euphoria não tem esses limites.

“Se funcionar, funciona”, ela disse em uma entrevista, descrevendo o espírito criativo da série e observando que Levinson escreve pensando na música, frequentemente incluindo suas escolhas de músicas no roteiro. “A biblioteca de música que ele tem em seu cérebro é infinita.”

Ela e sua equipe são então encarregados de tornar a visão de Levinson uma realidade, fazendo suas próprias sugestões, buscando a liberação dos muitos detentores de direitos da música e preenchendo lacunas quando necessário.

Zendaya interpreta a problemática Rue em 'Euphoria'. Foto: HBO

Na segunda temporada da série, os prólogos de episódios que contam as histórias de fundo dos personagens funcionam como curtas-metragens próprios, com tons e tempos distintos. Um salta de um cover de Elvis Presley para Bo Diddley, Harry Nilsson, Curtis Mayfield e Isaac Hayes, enquanto outro traz faixas de INXS, Depeche Mode, Roxette, Erasure, Echo & the Bunnymen, The Cult, Lenny Kravitz e Dan Hartman, tudo em um intervalo de 15 minutos.

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“A quantidade de música nesta série é insana”, disse Malone.

Para complicar ainda mais seu trabalho Euphoria gira em torno de transgressões lúgubres – luxúria, abuso de substâncias e violência, em particular – e as cenas devem ser descritas em detalhes durante o processo de aprovação da música. “Temos que ser espertos com a forma como falamos certas coisas, mas às vezes não há como contornar isso”, disse Malone.

A sequência finalmente definida de um cover de Elvis que abriu esta temporada apresentava nudez, drogas, armas e sangue - “todas as bandeiras vermelhas que você poderia imaginar” - levando a algumas recusas antes que o show se decidisse pela versão de Billy Swan de Don’ t Be Cruel, depois de apelar à editora da música e ao espólio de Presley.

Já foi alvo de debate e desconfiança pensar se os personagens da Geração Z da série estariam ou não ouvindo essa música. (“O gosto dos adolescentes de Euphoria para rap é ridículo”, decidiu o Pitchfork.) Mas, como acontece com seus figurinos de grife, a verossimilhança não vem ao caso.

“O realismo é secundário”, disse Perez, o editor. “Há uma certa quantidade de romantismo na abordagem”, com “as complexidades psicológicas dos mundos internos” tendo precedência.

A escolha de uma música pode sinalizar algo, como quando “Como La Flor” de Selena toca suavemente em uma cena com um personagem cuja herança mexicano-americana é mencionada, mas não explorada. Ou a música pode simplesmente soar bem.

Na era das playlists, “a garotada gosta de muitas coisas”, disse Labrinth, que reflete o alcance da série em sua trilha original “ilimitada” que funde hip-hop, rock, funk e sons eletrônicos. Ele comparou Levinson a um DJ pesquisador que provavelmente faria referência tanto a uma banda punk dos anos 80 como a um obscuro compositor italiano.

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Para quem ainda não conhece, Euphoria também pode funcionar como um mecanismo de recomendações para uma nova geração, como os filmes de Martin Scorsese e Quentin Tarantino, aos quais está constantemente acenando.

“Sabendo que nosso público é muito da geração Z, é quase como, ‘Ei, pessoal, ouçam um pouco disso’”, disse Malone, observando que uma cena de festa onde as músicas de Juvenile e DMX são tocadas também incluiu faixas mais recentes e pouco conhecidas de artistas como Blaq Tuxedo e GLAM

“‘Ah, você gosta de tudo isso que está tocando agora? Ouça isso!”, ela acrescentou. “Estamos dando a eles a mixtape que ganhei quando estava no ensino médio.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES.

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