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O Senado e a reversão do Brasil-pária nas relações exteriores; leia a análise

Em só um dia, o presidente viu duas pernas do tripé de sua "política exterior" - Eduardo Bolsonaro, Filipe Martins e Ernesto Araújo - ruírem no mesmo teatro político

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Por Hussein Kalout

Há dois anos, dois meses e 27 dias, a "política externa" do atual governo vem arrastando o Brasil para as profundezas do caos. A largada para o fundo do buraco foi dada precisamente no dia 02 de janeiro de 2019, com o discurso cataclísmico proferido pelo descomposto chanceler, em sua posse, no Palácio Itamaraty. Seu objetivo nada mais era do que a refundação de todos os cânones que iriam reger, a partir daquele momento, os interesses do Estado brasileiro no mundo! Uma revolução ideológica amparada em puro revisionismo histórico de pós-verdade. Àquela altura, ninguém imaginava onde o Brasil estava se metendo ou que, logo à frente, o País seria galardoado com a desonrosa distinção de nação-pária.

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O caldo entornou, e a política externa do presidente Jair Bolsonaro foi destituída pelo Senado da República - juntamente com seu chanceler. Ainda: a fúria com que os senadores acolheram o indescritível gesto do assessor internacional da Presidência só ampliou o diâmetro da crise. Em só um dia, o presidente viu duas pernas do tripé de sua "política exterior" - Eduardo Bolsonaro, Filipe Martins e Ernesto Araújo - ruírem no mesmo teatro político.

O Brasil inteiro quer o fim da chicana em que foi convertida a política externa. Gastar o tempo na tentativa de arrefecer os ânimos da conjuntura significa, na prática, manter imobilizada a capacidade de diálogo do País no exterior; isto é, significa prolongar a crise. O Senado, em especial o presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, não emitiu qualquer sinal de que pretende amenizar a pressão ou eventualmente recuar. Isto poderia transformar a instituição, aos olhos de toda a sociedade, em "tigre de papel" - seria a suprema desmoralização política do Poder Legislativo.

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na cerimônia de formatura dos alunos do Instituto Rio Branco. Foto: Valdenio Vieira/PR

A estratégia de deslocar o assessor internacional do Palácio do Planalto para qualquer outra repartição pública é manobra política que em nada abranda sua forte influência sobre Ernesto Araújo - e o Senado já compreendeu esse movimento. A autoridade de Filipe Martins sobre o chefe burocrático do Itamaraty, Ernesto Araújo, foi instituída pelo deputado Eduardo Bolsonaro, com o beneplácito de seu genitor, o presidente da República - o que for publicado no Diário Oficial, na verdade, será irrelevante. De perspectiva estratégica, o remanejamento de Filipe Martins para outro local na Esplanada asseguraria a continuidade do triunvirato da "política externa".

O temor do séquito bolsolavista é que eventual vacância no Ministério das Relações Exteriores amplie a pressão pela designação de político experiente para a pasta - o que hoje seria a melhor saída para os interesses do País e do povo brasileiro. Aliás, o Senado, a partir daquela audiência pública, decidiu finalmente exercer com efetividade o controle de constitucionalidade sobre a política externa. Nesse sentido, o consenso que vai se formando é de que o Senado não deveria abrir mão da nomeação de um de seus pares para o posto. Em processo de definhamento político, o presidente Bolsonaro já percebe que ninguém está disposto a ir com ele ao buraco.

O Brasil precisa recobrar sua capacidade de interlocução, e isso só será possível se o governo sinalizar concretamente que quer mudar os eixos de sua atuação internacional. O método e a substância empregados na condução da diplomacia brasileira se converteram em entrave à cooperação internacional, o que agudiza os riscos à saúde pública e à vacinação dos brasileiros.

Hesitante, o presidente sabe que nenhum político minimamente sério aceitaria ser designado sem ter autonomia para reorganizar as linhas da política externa e sem ter garantias públicas de que seu filho e seu demissionário assessor serão completamente alijados do epicentro decisório da área internacional. E esse é, no fundo, o grande dilema que assola o presidente da República. Pois ele tem ciência de que a presença de político tarimbado no timão do Itamaraty significa o fim do controle oficial e oficioso do triunvirato sobre as relações internacionais do País.

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Na matemática presidencial, se, no limite, Ernesto Araújo tiver de ser substituído e o presidente conseguir driblar o Senado, o perfil do novo chanceler dependeria de três componentes: forte relação de confiança com o triunvirato; proximidade ao núcleo ideológico; efetiva disposição de estar vinculado ao "projeto" bolsolavista. Em face desse cálculo, o nome que mais ressoa, por suas credenciais ideológicas na teia de poder do bolsonarismo, é o de Nestor Foster, embaixador do Brasil em Washington. Compete sublinhar, nesse particular, que, se Foster tivesse alcançado o topo da carreira diplomática antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, o escolhido para chefiar a Chancelaria teria sido provavelmente ele, e não Ernesto.

Foster é visto como alguém que é parte do "projeto", responsável pela iniciação do chanceler no olavismo. Até certo ponto, pode ser mais ideológico do que Ernesto; porém, é bem menos estridente e mais habilidoso. Cabe ressaltar que a troca de Ernesto por Foster não conduziria, caso se materialize, a qualquer mudança estrutural nas linhas da política externa. É também a hipótese que mais conserva a influência política e ideológica do triunvirato sobre as relações exteriores do País. É continuísmo, com outra roupagem.

E ainda que a decisão seja a de manter Foster em Washington e de optar por outro diplomata de carreira, essa escolha não ocorrerá sem os filtros próprios da engrenagem do método bolsonarista. Não obstante, a alternativa de nomear militar para o lugar de Ernesto, além de expor mais uma vez as Forças Armadas, dependerá do grau de agressividade da base bolsonarista e da receptividade do Senado - isso sem ponderar sobre como o corpo diplomático acolheria a indicação. A possibilidade de um militar no Itamaraty - ainda que não seja a opção preferida de bolsolavistas, diplomatas e políticos - é alternativa que poderia calhar aos interesses do triunvirato, pela possibilidade de lhe guardar certa reserva de poder e influência caso se confirme a costumeira disciplina militar diante de determinações presidenciais. Enfim, a proposição de quem quer que seja não passará incólume pelo funil ideológico do bolsonarismo, independentemente de reputação, experiência ou respaldo político.

O extremismo ideológico e a relativização da grave situação sanitária do país galvanizaram a revolta do Senado da direita à esquerda contra o atual chefe administrativo da diplomacia brasileira. Ernesto se tornou problema de governabilidade para governo já sufocado por seus graves erros. O presidente precisa compreender que o clamor do povo, das instituições e do setor privado é por mudanças na conduta e na substância das relações internacionais do Brasil, e não mera troca de um "avatar" ideológico por outro.

*Hussein Kalout, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.