Os temores a respeito de Giorgia Meloni são exagerados. Mas não a subestimem

Desejo de mudança dos italianos podem servir de apoio necessário às ideias de Meloni, que enfrentará resistência na União Europeia

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Por Henry Olsen*
Atualização:

Giorgia Meloni, que provavelmente assumirá o poder na Itália após a eleição do domingo, tem causado muita preocupação na Europa e nos Estados Unidos em razão dos laços históricos de seu partido com o neofascismo e de seus elogios ao húngaro Viktor Orbán. Esses temores são exagerados, mas ninguém deve subestimar o desejo da líder populista por mudanças políticas e econômicas significativas.

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Meloni cofundou o partido Irmãos da Itália em 2012, como uma dissidência do maior partido de centro-direita do país, O Povo da Liberdade. Os Irmãos eram nacionalistas desde a concepção, tirando seu nome de um verso do hino italiano. Eles usam cores e símbolos associados ao Movimento Social Italiano, do pós-guerra, partido fundado por apoiadores do ditador italiano Benito Mussolini. O grupo jamais defendeu o fascismo, mas sua origem, não obstante, sempre causou preocupações.

Mas a Itália não é a Hungria. A Itália possui meios de imprensa solidamente livres e tem sido uma democracia ocidental por quase 80 anos. Além disso, o partido de Meloni jamais empreendeu uma cruzada contra a democracia liberal à maneira de Mussolini ou até mesmo de Orbán. Os Irmãos não querem acabar com a democracia; querem respeitar tradições nacionais italianas e restaurar liberdades econômicas do país.

Imagem mostra edições dos jornais italianos da segunda-feira, 26, destacando Giorgia Meloni após partido ser o mais votado nas eleições do dia anterior Foto: Vincenzo Pinto / AFP

Ambas as preocupações marcam a ascensão de Meloni e explicam seu apelo. Ela chegou à proeminência quando proclamou, em 2019: “Sou mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã”. Esse conservadorismo social não tem raiz no passado; em vez disso, tem raiz em uma noção de que o passado da Itália merece respeito e é capaz de formar a fundação de seu futuro.

A questão econômica também é crucial para explicar sua ascensão. A Itália é um dos países fundadores da zona do euro, mas sua economia em grande parte se estagnou depois de adotar o euro, em 2002. Desde então, a economia da Itália não cresceu mais do que 2% anualmente, exceto pelo impulso pós-pandêmico do ano passado. A Itália também nunca se recuperou da crise financeira de 2008; o desemprego nunca ficou abaixo de 8% desde então, e o real PIB per capita do país permanece o mais baixo do que era em 2007.

Isso produziu uma inquietação política da qual Meloni e seu partido são os atuais beneficiários. A eleição de 2006 confrontou duas coalizões tradicionais na Itália, a centro-esquerda e a centro-direita, que conquistaram quase todos os votos. Partidos tradicionais pró-Europa ancoravam ambas as coalizões, sem nenhuma oposição populista séria. Em 2013, o Movimento 5 Estrelas (M5E), um partido populista antiestablishment populist, recebeu mais de 25% dos votos. Cinco anos depois, o M5E conquistou cerca de um terço dos eleitores, e 22% dos votos foram para os Irmãos e a Liga, que tinham adotado posições populistas anti-imigração.

Essa maioria se reafirmou no domingo, com os Irmãos na liderança. O partido de Meloni recebeu 26% dos votos, e o M5E e a Liga conquistaram juntos 24%. Outros 5% votaram em uma variedade de partidos populistas e soberanistas, incluindo um que quer a Itália fora da União Europeia.

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Claramente, manter o rumo não está na agenda dos italianos. Portanto, Meloni tem todo incentivo para romper com o passado recente da Itália.

Fazer isso não será fácil. Ela se verá amarrada pela massiva dívida italiana, que faz o país depender do apoio da União Europeia e do Banco Central Europeu. Seu conservadorismo social também poderia ser objetado pelo Parlamento Europeu. A primeira-ministra francesa reagiu à vitória de Meloni afirmando que a França “ficará atenta” às leis de aborto na Itália, para proteger o acesso das mulheres ao procedimento. A recente decisão da UE de reter ajuda financeira à Hungria — à que o partido de Meloni se opôs — mostra que Bruxelas não tem medo de vincular seu dinheiro aos seus valores.

Meloni sabe que tem de agir cautelosamente. Ela se esforçou durante a campanha para afirmar que a Itália será responsável fiscalmente sob sua liderança. Ela é favorável às sanções contra a Rússia e expressa amplo apoio à aliança ocidental. Ninguém deve esperar que ela cause agitação nessas áreas após assumir.

Não obstante, Meloni não pode operar como um líder europeu normal. Os italianos querem mudança e, nos anos recentes, se mobilizaram para apoiar qualquer partido que a prometa. Então, para permanecer no poder, ela deve mostrar que é capaz de forçar a UE a dar mais espaço para a Itália fazer o que a nação deseja.

Reação da líder dos Irmãos da Itália, Giorgia Meloni, após resultado das eleições, em imagem desta segunda-feira, 26 Foto: Guglielmo Mangiapane / Reuters

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Esse conflito provavelmente emergirá em três frentes: imigração, apoio financeiro da UE e tetos para os preços da energia. Em relação ao primeiro fator, a Itália é um país na linha de frente da migração originada na África e no Oriente Médio. Meloni pediu anteriormente um bloqueio naval para evitar a imigração em massa. Restringir a imigração é popular na Itália, e Meloni provavelmente estará disposta a se levantar contra a UE se o bloco desaprovar seus esforços para limitar o fluxo imigratório.

Em relação ao segundo fator, o apoio financeiro da UE à Itália vem principalmente do programa de recuperação da pandemia de coronavírus aplicado pelo bloco, o NextGenerationEU. Esse apoio é substancial, mas vem com muitas amarras. Meloni tem argumentado por uma renegociação com a UE, para ela poder usar esses fundos com mais flexibilidade. Espere que seu primeiro orçamento, previsto para o fim deste ano, reforce esse desafio.

Finalmente, Meloni declarou que a UE precisa estabelecer tetos sobre os preços da energia e que a Itália agirá caso isso não ocorra. Subsidiar esses tetos seria extremamente dispendioso, já que requereria transferências substanciais de governos para empresas de energia para manter sua solvência. A Alemanha, afirma-se, está considerando formas de aplicar tetos sobre os preços da energia, o que poderia produzir ambiente para acordo. Mas Meloni sabe que enfrentar Bruxelas e Berlim para proteger as contas de energia dos italianos, se ela tiver de fazê-lo, seria extremamente popular.

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Muitos no establishment europeu acreditam que são capazes de domar Meloni da mesma maneira que seus antecessores. Mas a primeira premiê mulher da Itália não deverá se render docilmente. Dado o forte desejo por mudança dos italianos, ela provavelmente será uma agente de transformação mais forte do que muitos pensam. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Henry Olsen é colunista do Washington Post e pesquisador-sênior do Ethics and Public Policy Center

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