Pílulas abortivas devem ser o próximo alvo dos conservadores nos EUA

Alguns Estados já estão se movendo para limitar acesso a medicamentos que permitem que a interrupção da gravidez seja feita em casa

PUBLICIDADE

Por Pam Belluck e Sheryl Gay Stolberg
Atualização:
7 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Se a Suprema Corte americana anular a decisão Roe vs. Wade, de 1973, que garante o direito ao aborto nos EUA, as guerras legais e culturais sobre o tema que consumiram o país se moverão para uma nova frente: o uso de pílulas abortivas.

O aborto medicamentoso — uma combinação de duas drogas que pode ser tomada em casa ou em qualquer local e está autorizada para uso nas primeiras dez semanas de gravidez — tornou-se cada vez mais frequente e agora é responsável por mais da metade dos abortos recentes nos Estados americanos.

Se a garantia federal do direito ao aborto desaparecer, a pílula abortiva provavelmente se tornará um método ainda mais procurado para interromper uma gravidez — se transformará também no foco das batalhas entre os Estados que proíbem o aborto e aqueles que continuam a permiti-lo.

“Considerando que a maioria dos abortos são precoces e o aborto medicamentoso é mais difícil de rastrear e já está se tornando o método preferido, vai ser um grande negócio”, disse Mary Ziegler, jurista que escreveu amplamente sobre o tema. “Vai gerar muitos conflitos legais futuros, porque será apenas uma maneira de as fronteiras estaduais se tornarem menos relevantes.”

Cerca de metade dos Estados americanos devem tornar rapidamente todos os métodos de aborto ilegais se a decisão dos juízes em um caso do Mississippi se assemelhar a um esboço da Suprema Corte vazado nesta semana, que anularia a decisão de 1973 que legalizou o aborto no país.

Outros Estados provavelmente continuariam a permitir o aborto, e vários já estão tomando medidas para acomodar pacientes dos Estados onde o procedimento poderia ser proibido.

Mulheres participam de manifestação a favor dos direitos reprodutivos nas proximidades da Suprema Corte americana Foto: Leah Millis / REUTERS

Continua após a publicidade

Menos invasivo

O aborto medicamentoso é menos caro e menos invasivo do que o cirúrgico. Em dezembro, a Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável por autorizar a circulação de medicamentos no país, facilitou significativamente o acesso a ele ao suspender a exigência de que os pacientes obtenham a primeira das duas pílulas, a mifepristone, visitando pessoalmente uma clínica ou médico autorizado.

Agora, as mulheres que desejam abortar podem ter uma consulta com um médico por vídeo ou telefone ou preenchendo formulários online e, em seguida, receber as pílulas pelo correio.

Muitos Estados conservadores, no entanto, já começaram a aprovar leis para restringir o aborto medicamentoso, proibindo seu uso antes de dez semanas de gestação e exigindo que os pacientes visitem os profissionais pessoalmente, apesar das regras da FDA.

E 19 Estados proíbem o uso de telemedicina para o aborto. Este ano, o Americans United for Life, grupo de defesa antiaborto, listou as leis contra o aborto medicamentoso como a primeira entre as “prioridades urgentes” da organização para 2022.

Ativista é consolada em manifestação pró-aborto após relatar episódio de abuso Foto: Anna Moneymaker / AFP

“No ano passado, Arizona, Arkansas, Indiana, Montana, Ohio, Oklahoma, Dakota do Sul e Texas promulgaram salvaguardas estaduais para impedir o aborto medicamentoso por correspondência, e o Congresso do Tennessee recentemente enviou essas proteções ao governador Bill Lee”, explica Mallory Carroll, do grupo anti-aborto Susan B. Anthony List.

Continua após a publicidade

“Além de criar padrões de saúde e segurança, os Estados também estão aumentando os requisitos para relatar complicações de medicamentos abortivos. Trabalharemos com aliados em outros Estados para enfrentar essa crescente ameaça à saúde pública.”

Moradores de Estados que baniriam rapidamente todos os métodos de aborto se Roe fosse derrubado — incluindo Texas, Missouri, Utah e Tennessee — seriam legalmente proibidos de realizar consultas de aborto por telemedicina de qualquer local em seu Estado, mesmo que o médico estivesse em um Estado onde o procedimento é legal.

Os pacientes teriam de viajar para um Estado onde uma consulta online, por vídeo ou por telefone, fosse permitida, sendo que o endereço IP do computador ou telefone usado identificaria sua localização. Ainda assim, teriam de receber as pílulas abortivas pelo correio em um endereço em um Estado onde o procedimento é legal, mesmo que seja uma caixa postal ou um hotel.

Algumas pacientes já estão fazendo isso porque moram em um dos Estados que proíbem o uso da telemedicina para o aborto. Alguns aspectos dessas leis não são claros, incluindo se as pacientes que tomam as pílulas depois de retornar ao seu Estado de origem estão violando a lei de seu Estado.

Se o aborto fosse completamente proibido nesses Estados, muito mais pacientes viajariam para locais onde ele seria legal, de acordo com especialistas em saúde reprodutiva.

Privacidade

Várias organizações, incluindo Abortion on Demand e Hey Jane, agora organizam consultas por telemedicina e enviam pílulas por correio de uma das duas farmácias de venda por correspondência que estão atualmente autorizadas pelos dois fabricantes de mifepristone a vender esse medicamento.

Continua após a publicidade

Mas pode haver tentativas de Estados que proíbem o aborto de processar médicos e outros profissionais de saúde em locais onde o aborto é legal, por exemplo, ou tentar bloquear organizações ou fundos que fornecem ajuda financeira para pacientes viajarem para outros Estados, disse Ziegler.

Se a decisão Roe vs Wade for derrubada, aborto medicamentoso deve se tornar o próximo ponto de inflexão na guerra cultural americana Foto: Mariam Zuhaib / AP

Os Estados que apoiam o direito ao aborto estão se mobilizando para bloquear tais esforços. A legislação na Califórnia forneceria assistência financeira a pacientes que viajam de outros Estados para realizar abortos e aumentar o número de provedores. Connecticut acaba de aprovar um projeto de lei que impediria que os provedores de aborto fossem extraditados para outros Estados, impedindo suas autoridades de cooperar com as investigações de aborto do Estado de origem de um paciente.

O aborto medicamentoso tornou-se legal nos EUA em 2000, quando o mifepristone foi aprovado pela FDA. A agência impôs restrições rígidas à droga, muitas das quais permanecem em vigor. Mas o acesso ao método aumentou em 2016, quando a FDA expandiu o prazo dentro do qual a droga poderia ser tomada, passando de sete para dez semanas de gravidez.

À medida que os Estados conservadores começaram a aprovar mais leis restringindo o acesso a abortos cirúrgicos, mais pacientes optaram por pílulas, especialmente porque podem ser tomadas na privacidade de sua casa.

A pandemia de covid-19 alimentou essa tendência. O Instituto Guttmacher, organização que apoia o direito ao aborto, informou que, em 2020, o procedimento medicamentoso representou 54% de todos os realizados no país.

Saúde reprodutiva

Continua após a publicidade

Além do mifepristone, o misoprostol, que causa contrações semelhantes às de um aborto espontâneo, há muito está disponível para uma variedade de usos com receita comum.

Um alto funcionário do governo Biden disse esta semana que as autoridades estão procurando outras medidas que o governo possa tomar para aumentar o acesso a todos os tipos de aborto, incluindo a pílula. Falando sob condição de anonimato, o funcionário disse que o presidente Biden orientou sua equipe “em todos os aspectos de todas as formas criativas, e em todos os aspectos da lei federal, para tentar fazer todo o possível” para proteger o direito ao aborto.

Como parte desse esforço, o secretário de Saúde e Serviços Humanos de Biden, Xavier Becerra, disse em depoimento ao Senado, que estabeleceu uma força-tarefa de saúde reprodutiva.

Mas há limites rígidos sobre o que o governo pode fazer sem o Congresso. A Emenda Hyde, que impede que os dólares dos contribuintes sejam usados para interromper a gravidez, proíbe o uso de fundos federais para pagar o aborto, incluindo por meio do programa Medicaid, exceto em casos de estupro, incesto ou risco de vida.