O governo da Venezuela conseguiu fazer do país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo um Estado arrasado no qual falta comida, sobra violência e o dinheiro não vale nada.
Apesar disso, seu controle do poder ainda parece forte. Ele neutralizou os tribunais, fustigou a imprensa e substituiu o Legislativo controlado pela oposição por um mais maleável, integrado apenas por chavistas.
Nem mesmo os protestos de massa puderam impedir a guinada para o autoritarismo. E por que não? Porque a Venezuela de Nicolás Maduro aprendeu o que o Zimbábue de Robert Mugabe havia aprendido uma década atrás: é possível fazer o povo ficar de seu lado, não importando as privações, se ele concluir que os opositores são inimigos.
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Conclui-se, então, que revoluções não precisam apenas de pão: elas também se alimentam de polarização.Essa é única explicação para o fato de que dois dos governos que mais arruinaram as economias de seus países em anos recentes sejam também os que mais duram no poder.
A Venezuela tem a mair inflação do mundo, a segunda maior taxa de desemprego, o terceiro maior índice de homicídios e o décimo maior nível de corrupção. Para se ter uma ideia de como a situação é grave, o Fundo Monetário Internacional calcula que a inflação seja hoje de 1.000% ao ano, devendo chegar a 2.000% quando 2018 terminar. O governo, claro, parou de publicar as estatísticas.
A moeda nacional morreu. Houve uma queda de 99,99% nos últimos seis anos.Foi o mesmo que ocorreu no Zimbábue, apenas com números ainda piores. Sua economia encolheu 50% entre 1998 e 2008, enquanto a inflação explodia a níveis tão astronômicos que, segundo o professor da Johns Hopkins Steve Hanke, os preços chegavam a dobrar de um dia para o outros. Foi a segunda maior hiperinflação da história e o país ainda não se recuperou totalmente. Mesmo hoje, a economia do Zimbábue é 10% menor do que era há 20 anos.
“Em nove em dez casos, governos que se saem tão mal economicamente por períodos significativosprovavelmente cairão”, disse Steven Livitsky, cientista político de Harvard e coautor do livro recém-lançado How Democracies Die (como as democracias morrem).
Esses governos são desalojados do poder por meio de eleições, em consequência de manifestações, pelas Forças Armadas ou mesmo por membros ambiciosos do próprio regime que querem garantir um futuro político para si. De um modo ou outro, alguém vai detê-los antes que suas políticas fracassadas transformem o país num Estado falido.
A menos que o governo consiga dividir a população, o truque mais velho que existe no ramo. Embora seja verdade que eleições podem ser canceladas, manifestantes podem ser mortos, generais podem ser comprados e desertores podem pular fora, todas essas táticas ditatoriais implicam amplos retrocessos. Elas também exigem no mínimo o apoio tácito do restante do regime. O presidente pode dar ordem de atirar, mas é preciso que os soldados as cumpram.
Então, o que um autocrata economicamente mal-sucedido precisa é de algo que impeça que os que estão fora do governo se unam e que os que estão dentro se dividam.
E isso não é algo ideológico. É álgo que a Venezuela e o Zimbábue têm em comum. Ambos os regimes nasceram da oposição à extrema desigualdade e a regimes que se locupletavam no poder.
No caso da Venezuela, fator deflagrador foi o abismo entre ricos e pobres que governos anteriores, muito ocupados em administrar medidas de austeridade aprovadas pelo FMI, pouco podiam fazer para diminuir. No caso do Zimbábue, foi o sistema racista de castas que as autoridades coloniais adotaram e os colonizadores brancos mantiveram. O que significa que as sociedades dos dois países há muito estavam profundamente divididas.
Os chavistas na Venezuela e o Zanu-PF no Zimbábue organizaram-se politicamente em torno desse fato. O problema é que, nessas circunstâncias, ciclos de polarização cada vez maior se fortalecem. Partidos deixarem de ser grupos competindo por interesses diversos para se tornarem tribos hostis. E a própria política se transforma numa guerra em que tudo é permitido. Esse tudo inclui assumir o comando total da economia. Chavistas e Zanu-PF fizeram isso em resposta a desafios a seu regime. Nenhum deles estava disposto a tolerar qualquer fonte de poder, política ou econômica, fora de seu controle. A revolução era importante demais, e seus imigos traiçoeiros demais.
Assim, em 2003 o presidente venezuelano Hugo Chávez substitiu 18 mil grevistas da empresa petrolífera estatal que conheciam seu serviço – cerca de 40% do quadro da companhia – por 18 mil pessoas cujo único mérito era ser de confiança do regime.
O previsível resultado foi o achatamento da produção de petróleo justamente quando o governo mais precisava de dinheiro para bancar seu ambicioso programa de gastos sociais. Como nem os três dígitos que o preço do petróleo atingiu na ocasião foram suficentes para pagar a conta, o governo passou a imprimir o que faltava – o que se tornou muito mais quando os preços do petróleo despencaram em 2014.
Os chavistas fizeram tantos erros econômicos quanto se esperaria dos mais ignorantes cartéis de drogas. O maior erro, porém, foi matar a galinha dos ovos de ouro ao tentar controlá-la. A partir daí, por mais que se imprimisse dinheiro, nunca era suficiente. Com o Zimbábue não foi diferente, exceto que a falência foi mais súbita do que gradual. A derrocada começou em 2000, quando Mugabe foi derrotado num referendo constitucional pelo qual esperava obter ainda mais poder.
Ele acusou fazendeiros brancos pela derrota e decidiu investir contra eles, procurando ao mesmo tempo turbinar sua popularidade com a distribuição das terras dos brancos a seus apoiadores negros. Foi a pior resposta possível.
Como varios Estados pós-coloniais africanos, o Zimbábue vinha procurando equilibrar o que era bom para a economia com o que era justo para o povo, historicamente oprimido. Mugabe não pretendia romper com os fazendeiros brancos, a espinha dorsal da economia, tão abruptamente que a produção caísse, embora pretendesse romper eventualmente.
Até então, Mugabe tinha conseguido manter uma prática razóavel: vender a compradores negros fazendas de brancos que entrassem no mercado. O governo, porém, passou simplesmente a tomar terras e distribuí-las a apaniguados, sem se preocupar em saber se eles conseguiriam cultivá-las. Eles não conseguiam.
O Zimbábue, então, deixou de ter uma economia – mas manteve o poder de fabricar dinheiro. E imprimia com tal fúria que chegou a haver notas de 1 trilhão de dólares zimbabuanos.
A ironia é que esses dois diferentes governos fracassaram pela mesma razão que manteve o povo apoiando-os: a polarização. “Os chavistas realmente odeiam os opositores”, disse-me Livtsky. “Ainda os consideram fantoches imperialistas empenhados em trazer de volta a velha ordem.”
Isso significa que “romper com Maduro é aderir ao inimigo”, embora o governo seja responsável pela crise humanitária na qual três quartos dos venezuelanos adultos emagreceram nove quilos cada um em 2016. Mugabe igualmente conseguiu sobreviver a uma das maiores catástrofes econômicas da história moderna porque, segundo Livitsky, como “líder de um disciplinadíssimo partido libertador, soube usar as lembranças da guerra e o próprio heroísmo para cerrar fileiras em torno de si”.
Foi apenas quando quis fazer da mulher a próxima na linha sucessória que ele foi deposto. Seu regime, porém, continua.
Tudo isso não significa que nada abale esses governos ou que eles não venham a cair. “As condições são muito favoráveis para um racha na Venezuela”, disse-me Levtsky, “pois o crescente aperto financeiro deve levar a mais confrontos por poder e recursos entre diferentes elites".
Continuar leal a um presidente mesmo que ele eventualmente mate pessoas na rua é o tipo de comportamento que leva países à ruína. Isso é verdade falando-se da Venezuela, do Zimbábue ou de mais perto de casa. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É JORNALISTA
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