Em 2024, mais da metade da população mundial foi às urnas. Bilhões de pessoas exerceram seu direito de voto em mais de 80 países — das democracias mais consolidadas até os governos mais autoritários. Como resultado das urnas, a direita populista ascendeu, sobretudo nos EUA e na Europa, enquanto partidos tradicionais de centro e de esquerda entraram em crise. Esse cenário, dizem analistas, resulta do acirramento da polarização política. Com isso, propostas moderadas perdem o apelo e discursos fáceis ganham força, enfraquecendo a democracia liberal.
Os Estados Unidos elegeram Donald Trump para um segundo mandato, consolidando um movimento populista de direita que já vinha crescendo no país desde 2016. Na Europa, o Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita, manteve-se como o maior grupo político no Parlamento Europeu, mas a ascensão de grupos nacionalistas e de extrema direita em diversos países — como França, Alemanha e Holanda — sinalizou um deslocamento político à direita.
O Reino Unido, na contramão, viu um retorno do Partido Trabalhista ao poder, encerrando 14 anos de governos conservadores. No México, Claudia Sheinbaum, do partido Morena, venceu com ampla margem, consolidando a continuidade do projeto iniciado por Andrés Manuel López Obrador.
Em regimes autoritários, eleições ocorreram sem qualquer surpresa. Rússia e Venezuela reelegeram seus líderes em pleitos amplamente criticados por falta de concorrência real e repressão a opositores. Na África, o Congresso Nacional Africano (ANC) manteve-se no poder na África do Sul, mas com a votação mais baixa de sua história, refletindo um crescente descontentamento popular. Já na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi assegurou um novo mandato, fortalecendo ainda mais seu partido nacionalista hindu, o BJP.
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Mesmo antes do ano começar, a tendência já era clara: entre 2020 e 2024, um quinto de todos os resultados eleitorais enfrentou algum tipo de contestação, segundo um relatório divulgado em setembro pela International IDEA, uma organização intergovernmental que apoia a democracia ao redor do globo. No mesmo período, uma em cada cinco eleições teve candidatos derrotados que rejeitaram publicamente o resultado.
“De modo geral, em termos do número de países que realizaram eleições, o cenário mostra principalmente um afastamento da democracia liberal e dos discursos baseados em direitos, dando lugar a democracias iliberais, onde a oposição é retratada como inimiga do povo, enquanto o líder (geralmente um homem forte) é apresentado como o salvador da nação”, diz Nitasha Kaul, diretora do Centro de Estudos da Democracia da Universidade de Westminster, no Reino Unido.
O populismo de direita e a esquerda perdida
A ascensão e consolidação da direita radical e do populismo de direita ganharam força em 2024. Partidos populistas de direita radical estão entre as três forças políticas mais poderosas em um terço dos países europeus, segundo um estudo de Murat Aktas publicado no Sage Journal em novembro.
Na Áustria, o partido Freiheitliche Partei Österreichs surgiu como líder nas eleições de 2024, ganhando 28,9% dos votos. Na Hungria, o partido Fidesz de Viktor Orbán venceu sua quarta eleição consecutiva. Na França, o Rally Nacional de Marine Le Pen obteve vitórias importantes no Parlamento Europeu e nas eleições nacionais, tornando-se o maior partido do país. Os resultados parecem dar sequência a um movimento já visto nos anos anteriores na Itália, na Holanda e na Alemanha.
O resultado da eleição nos Estados Unidos coloca a “cereja em cima do bolo” sobre a ascensão do populismo de direita, diz Cocco Giuseppe, que é filiado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Rede Universidade Nômade Brasil.
Diferentemente de 2016, quando a eleição de Trump foi vista como um acidente político, sua vitória em 2024 mostrou a força duradoura de seu movimento. “Em 2016, todo mundo estava atônito. Era um acidente, ninguém esperava, ele não tinha ganho o voto popular. E dessa vez ele voltou com tudo, conquistou o Senado, conquistou o Congresso. Voltou apesar de toda a situação judiciária e está voltando para tentar testar todos os limites constitucionais americanos”, afirma Giuseppe.

Essa ascensão, diz o especialista, se explica pela crise das propostas reformistas moderadas, que perderam apelo diante de uma sociedade cada vez mais polarizada e cética em relação às instituições tradicionais. É também resultado da crise da centro-esquerda, incapaz de oferecer respostas eficazes às demandas da população, favoreceram o crescimento desses movimentos.
É um movimento, portanto, que se retroalimenta: enquanto a extrema direita se fortalece, a esquerda parece cada vez mais perdida e incapaz de responder de maneira eficiente a esse fenômeno. E estes dois movimentos parecem ter origens na polarização iniciada em meados de 2010, a qual Giuseppe considera ter sido iniciada pela esquerda.
“Houve uma polarização do discurso em particular no âmbito intelectual que, sem trazer nenhuma proposta interna de reforma de dinâmica institucional, só se afirmou nessa ideia da saída do capitalismo. Mas que virou ideológico”, explica o especialista.
Essa radicalização da esquerda não se deu no sentido de um discurso revolucionário tradicional, mas sim em torno da questão identitária.
“É curioso que ela não se deu num discurso como ‘Ah, vamos fazer o comunismo’, como podia ser nos anos 60 ou 70. Ela se deu nessa produção da diferença… E a questão identitária tende a essencializar tudo, essencializar as identidades, e, no fundo, chega a essencializar, por exemplo, uma das grandes armadilhas nas quais nós estamos: a essencialização do adversário político, que vira um inimigo”. “A esquerda está perdida pois fica dentro desta dessas armadilhas.”
Para Nitasha, é exatamente esta armadilha discursiva que, da mesma forma, acalora a ascensão do populismo de direita. “Eles se alimentam das misérias das pessoas comuns e transformam as diferenças sociais em divisões, enquanto afirmam falar pela ‘maioria silenciosa’”, avalia.
“Eles funcionam por meio da criação de inimigos, onde são as minorias religiosas e/ou étnicas, feministas, pessoas LGBT+, liberais e a sociedade civil que são vistas como ‘enfraquecedoras’ do corpo político da nação.”
Os bilionários da tecnologia entram em cena
Pautas como imigração, nacionalismo, segurança pública e desconfiança das instituições impulsionam o populismo de direita há alguns anos. Mas, em 2024, atores importantes — e de alto valor, literalmente — entrou em jogo como um dos fatores para essa ascensão: os bilionários da tecnologia.
O movimento foi puxado pela pessoa mais rica do mundo, Elon Musk, que financiou a campanha de Donald Trump com mais de US$ 200 milhões, participou de comícios usou sua rede social X para apoiar o republicano. Este movimento, aliás, parece estar se repetindo agora na Europa.
Mas na posse de Trump ficou claro que o interesse não é só do dono da Tesla. Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google) e Tim Cook (Apple) se sentaram na primeira fileira na cerimônia.
O que está por trás desse interesse é o fato de que o governo Trump provavelmente terá uma abordagem mais permissiva para a regulamentação da IA, permitindo que as empresas de tecnologia avancem com menos barreiras legais.
“Onde tem um processo de regulação das redes sociais da bigtechs cada vez mais avançado? Na Europa. Isso explica o ativismo do Musk”, diz Giuseppe. “A questão que se coloca médio ou longo prazo é saber se essa coalizão entre o Maga e as big techs é uma coisa que pode ir pra frente do ponto de vista material.”

Em sua primeira semana de governo, Trump anunciou um investimento massivo de até US$ 500 bilhões, em parceria com a OpenAI, a Oracle e o SoftBank, em infraestrutura de inteligência artificial nos Estados Unidos. O projeto, nomeado de Stargate, é uma resposta a pedidos de líderes da IA que pediam por mais datacenters no país.
Mas essa aproximação não parece ser somente interesse em negócios. Há pontos ideológicos que também indicam caminhos cruzados entre os líderes e o magnata de tecnologia. Musk, por exemplo, tem sido crítico das políticas progressistas relacionadas ao meio ambiente e à diversidade. Zuckerberg, ao mudar a política de moderação de conteúdo da Meta, passou a permitir insultos de caráter homofóbico, transfóbico, xenófobo ou mesmo misógino.
“Isso está se tornando um problema significativo, onde bilionários individuais e suas visões podem se manter preponderantes, mesmo em detrimento de fatos ou evidências”, diz Nitasha. “Comentários recentes de Elon Musk sobre a política do Reino Unido ou da política alemã, indicando a defesa da extrema direita e ataques pessoais contra políticas femininas progressistas, indicam a extensão desse problema.”