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Restaurante flutuante de Hong Kong afunda no mar repleto de memórias

Restaurante simbolizou a celebração e o luxo em Hong Kong por quase meio século, mas encerrou atividades por dificuldades financeiras

Por Mike Ives e Alexandra Stevenson
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Quando os rebocadores arrastaram o Jumbo Floating Restaurant para longe de Hong Kong, na semana passada, a empresa proprietária da gigantesca embarcação expressou ao público seus “melhores desejos por um futuro mais promissor”. Esse futuro jaz agora no fundo do Mar do Sul da China.

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O restaurante flutuante de 79 metros de comprimento e três andares adernou e afundou enquanto era rebocado sobre águas profundas durante o fim de semana, afirmou sua proprietária, a Aberdeen Restaurant Enterprises, na segunda-feira. Ninguém ficou ferido, afirmou a empresa.

A perda do Jumbo reverberou por toda Hong Kong, território chinês em que o colosso iluminado por neon — construído em estilo de palácio imperial — ficou ancorado no mesmo porto por quase meio século. Várias gerações de cidadãos de Hong Kong celebraram casamentos e fecharam negócios deliciando-se com iguarias cantonesas como barriga de porco crocante e caranguejo de manguezal cozido no wok. Para muitas pessoas que vivem na ex-colônia britânica, o restaurante simbolizou um período da história local mais otimista que o atual.

Imagem do dia 14 de junho deste ano mostra visão aérea do restaurante Jumbo, em Hong Kong. Estabelecimento foi aberto em 1976 e por anos fez parte de um complexo chamado Jumbo Kingdom, que incluía um restaurante flutuante menor Foto: Peter Parks / AFP

O ocaso do Jumbo ocorre em um momento de imensa inquietação em Hong Kong, que se iniciou quando protestos antigoverno convulsionaram a cidade por meses, em 2019. As manifestações fizeram com que o governo chinês impusesse em 2020 uma poderosa lei de segurança nacional sobre o território, que desde então tem erodido o que sobrou de suas instituições democráticas.

A agitação continuou durante a pandemia, enquanto fechamentos de fronteiras e medidas de distanciamento social aniquilavam milhares de negócios de família e ameaçaram algumas das mais conhecidas empresas da cidade, incluindo a popular Star Ferry.

Num momento em que a Star Ferry e outros ícones visuais de Hong Kong estão sob ameaça, “parece que a maioria de seus símbolos mais visíveis está desaparecendo, um a um”, afirmou Louisa Lim, autora do livro “Indelible City: Dispossession and Defiance in Hong Kong” (Cidade inextinguível: expropriação e desafio em Hong Kong).

“Isso, combinado com as enormes mudanças políticas trazidas pela legislação de segurança nacional, faz os moradores de Hong Kong duvidarem se algo restará de sua cidade”, acrescentou ela.

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O Jumbo foi aberto por Stanley Ho, um magnata dos cassinos de Macau, em 1976, e por anos fez parte de um complexo chamado Jumbo Kingdom, que incluía um restaurante flutuante menor, o Tai Pak. A inauguração da embarcação maior foi postergada por um incêndio ocorrido em 1971, que matou 34 pessoas e deixou dezenas de feridos, de acordo com o jornal The South China Morning Post.

Inúmeras celebridades visitaram o Jumbo Kingdom ao longo dos anos, incluindo o ator Tom Cruise, o empresário Richard Branson e a rainha da Inglaterra, Elizabeth II. O Jumbo Floating Restaurant também foi cenário do filme “007 contra o homem com a pistola de ouro”, de 1974, e de vários outros sucessos de bilheteria locais.

Em “Contágio”, de 2011, um thriller a respeito de uma pandemia global, uma cena crucial foi filmada no restaurante: a personagem de Gwyneth Paltrow torna-se a primeira vítima da pandemia depois de contrair um vírus mortífero de um chef.

Mesmo com gigantescas torres residenciais crescendo ao redor do Jumbo, seu ofuscante logo em neon e sua imponente arquitetura em estilo imperial ainda dominavam a paisagem do Porto de Aberdeen, no sudoeste da ilha de Hong Kong. E ainda era um lugar onde moradores de Hong Kong iam construir memórias; Lim, a escritora, escreveu no Twitter na semana passada que ir ao Jumbo era um ritual anual para sua família.

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Em 2020, porém, o Jumbo registrava perdas de milhões de dólares, e as restrições contra a pandemia em Hong Kong sobre restaurantes e turismo forçaram o estabelecimento a fechar. A Aberdeen Restaurant Enterprises afirmou na época que não conseguia manter os gastos com manutenção e vistorias, oferecendo doar o Jumbo a um parque temático local.

Posteriormente naquele ano, a chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, afirmou que o governo da ilha cooperaria com o parque temático e ONGs locais para “o renascimento do restaurante flutuante”. Mas o plano não funcionou, e Lam disse no mês passado que o governo não investiria dinheiro de impostos no restaurante, que havia acumulado aproximadamente US$ 13 milhões em prejuízos ao longo de mais de uma década.

O Jumbo foi rebocado para longe de Hong Kong em 14 de junho. A Aberdeen Restaurant Enterprises se recusou naquele momento a informar para onde a embarcação se encaminhava, mas a empresa havia afirmado anteriormente que ela seria movida para longe da cidade para passar por manutenção e ser ancorada.

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Em um comunicado, a empresa afirmou que o Jumbo “começou a adernar” no domingo, quando passava pelas Ilhas Paracel, um arquipélago em disputa no Mar do Sul da China reivindicado por China, Vietnã e Taiwan. A empresa afirmou que o acidente ocorreu em uma área onde a profundidade do mar passa de mil metros, “o que dificulta extremamente a realização de trabalhos de resgate”.

Stephen Ng, porta-voz da Aberdeen Restaurant Enterprises, recusou-se a comentar a especulação que circula online a respeito da embarcação ter sido afundada para cobrança de seguro. Não existe nenhuma evidência imediata sugerindo fraude.

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No comunicado que divulgou na segunda-feira, a Aberdeen Restaurant Enterprises afirmou estar “buscando mais detalhes a respeito do acidente neste momento com a empresa de reboque marítimo”. E não informou o nome da empresa.

O Jumbo não era amado por todos. O sociólogo Ho-fung Hung, professor da Universidade Johns Hopkins e estudioso da política de Hong Kong, classificou o restaurante flutuante como “auto-orientalizante” e afirmou que não vale a pena lamentar sua perda.

“Comida ruim e cara para turistas sem noção em busca de experiências exóticas e constrangedoras”, escreveu ele no Twitter na semana passada. “Já foi tarde, não volte nunca mais.”

Mas para alguns moradores de Hong Kong, perder o Jumbo é parte de um padrão no qual as coisas que eles mais amam a respeito de sua cidade vêm desaparecendo, o que ocorre desde os protestos de 2019. Alguns usuários de redes sociais descreveram o naufrágio como um “prego no caixão” para a cidade. Outros o qualificaram como um “funeral no mar”.

Uma ilustração popular circulando pelas redes sociais mostra o Jumbo atingindo o fundo do mar enquanto peixes nadam tranquilamente.

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Na ilustração de Ah To — nome de guerra de um cartunista que satiriza a política e emigrou recentemente de Hong Kong, afirmando que sofreria “grande estresse mental” se ficasse — há duas estátuas sobre o leito marinho. Uma delas é uma mulher de olhos vendados segurando uma balança da justiça desequilibrada. A outra é uma mulher segurando uma tocha, em referência à Deusa da Democracia, símbolo de protesto que foi removido do campus de uma universidade de Hong Kong no ano passado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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