Shenzhen é um milagre.
Em 1980, este era ainda um pequeno vilarejo com pouco mais de 25 mil pescadores, quando Deng Xiaoping decidiu transformá-lo na primeira Zona Econômica Especial da China.
A cidade virou um laboratório a céu aberto, governada pelos princípios burgueses que Mao tanto havia combatido, e não demorou para provar a supremacia da economia de mercado – em menos de três décadas, viu a chegada de mais de 10 milhões de migrantes e um crescimento econômico superior aos 9.000%.
Hoje, Shenzhen é um centro da indústria eletrônica chinesa. Há todo um ecossistema na cidade voltado para essa produção, e grandes empresas globais aproveitando a eficiência dessa cadeia de suprimentos para manter baixo os seus custos e altas as suas margens de lucro.

A cidade que sofria com a fome na experiência maoista, hoje é uma das 10 mais ricas da Ásia. Apple, Qualcomm, Microsoft, Samsung, Sony e Amazon estão em Shenzhen. A Intel tem um centro de pesquisa e desenvolvimento na região. Shenzhen também é o lar das chinesas Huawei, Tencent, BYD, DJI e Shein. 65% dos laptops e tablets exportados no mundo saem da China, assim como quase a metade dos smartphones. Boa parte dessa produção vem dessa cidade.
Mas Shenzhen não é o único exemplo de sucesso da abertura econômica chinesa.
A uma hora desse lugar está Zengcheng, na mesma província de Guangdong. A especialidade de Zengcheng não é a indústria eletrônica, mas o jeans. Hoje, 40% de todas as peças de jeans vendidas nos Estados Unidos vêm de Zengcheng. Todos os anos, mais de 260 milhões de peças de jeans são produzidas aqui.
Há exemplos aos montes como Shenzhen e Zengcheng.
Chenghai é especializada em brinquedos. 1/3 de todos os brinquedos de plástico do mundo são feitos nesse bairro de Shantou.
Yiwu é conhecida como “a capital mundial das pequenas mercadorias” – fabrica, todos os anos, toneladas de itens de pequeno porte: de bijuterias a artigos de papelaria.
Guzhen é a capital da iluminação. São mais de 7 mil empresas do segmento na cidade. 70% de tudo o que a China produz em iluminação vem desse lugar.
Wenzhou abriga mais de 4 mil empresas de calçados e produz 1,3 bilhão de calçados por ano. A cidade fabrica quase um em cada sete pares de sapatos femininos que há no mundo.
Keqiao é o maior mercado de tecidos da Terra, com mais de 10 mil fornecedores. 1/4 da produção têxtil global é comercializada nesse lugar.
Songxia, na província de Zhejiang, possui mais de 2 mil fabricantes e fornecedores de guarda-chuvas. Desse canto do mundo saem todos os anos mais de 600 milhões de guarda-chuvas.
Haining é um centro da produção de couro, com milhares de fabricantes de jaquetas, bolsas e sapatos.
Suzhou é a cidade dos vestidos de noiva. 70% dos vestidos de noiva do mundo são produzidos nessa cidade.
Xingtai é um polo de produção de bicicletas. E nessa altura, você já entendeu o ponto.
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Muito do que você tem na sua casa é produzido nessas cidades. Essa produção explodiu desde que os chineses abraçaram a economia de mercado, mas muitas dessas regiões já tinham, há séculos, alguma habilidade artesanal que acabou adaptada para a indústria moderna. Chaozhou, por exemplo, tem tradição em porcelana desde a Dinastia Song. Yangjiang é famosa há muito tempo pela produção de facas.
Não é difícil entender por que essa distribuição de manufatura é tão eficiente. Quando muitas empresas do mesmo segmento se concentram no mesmo lugar, geram inúmeras vantagens.
Primeiro, o óbvio: facilidade para encontrar fornecedores de peças e matéria-prima. Se você precisa comprar peças para automóveis na China, o seu destino é Taizhou. Se o seu interesse no país são as roupas esportivas, Quanzhou é o lugar. Há literalmente milhares de fornecedores para a sua demanda.
Em cada um desses lugares também há uma força de trabalho treinada especificamente para o tipo de produção que a cidade é especializada. E a proximidade dessas empresas também incentiva a inovação: como os concorrentes são vizinhos, trocam ideias, copiam uns aos outros e provocam essas indústrias a viver em constante transformação.
Também há baixíssimos custos logísticos, já que as fábricas, os fornecedores e os distribuidores trabalham lado a lado – ao mesmo tempo em que há abundância de compradores. Em Keqiao, por exemplo, produtores de tecido conseguem tingir, cortar e embalar os produtos sem precisar sair da cidade.
Por fim, a maioria desses polos de produção ficam próximos dos grandes portos da costa leste da China (Xangai, Shenzhen, Guangdong), o que facilita a exportação desses produtos para o mundo inteiro. É importante lembrar que, em volume, até 90% do comércio global é transportado pelo mar.

Mão de obra também não é um problema para essas cidades. Os chineses têm uma densidade demográfica bastante desigual. Esse mapa aqui é conhecido como Linha Heihe–Tengchong. 94% da população chinesa vive na área laranja, onde estão os principais centros de produção do país.

Ter esse ecossistema à disposição ajudou a China a conquistar, sozinha, 30% da produção industrial global. Ou seja: hoje, quase 1/3 de tudo que é fabricado no mundo em bens industriais (máquinas, roupas, eletrônicos, produtos químicos, brinquedos, móveis) vem desse país – e em alguns segmentos, esse domínio ultrapassa os 50%.
A China também tem um papel central na cadeia global de terras raras, dominando praticamente todas as etapas do segmento. Terras raras são um grupo de 17 elementos químicos da tabela periódica, essenciais na produção de uma infinidade de coisas, como motores elétricos, turbinas eólicas, smartphones, refinarias de petróleo, carros, telescópios e componentes militares. 36% das reservas conhecidas de terras raras no mundo estão na China, mas durante muito tempo, a China respondeu por mais de 80% da produção global do segmento. Ainda hoje ela é a líder indiscutível desse setor.
Tudo isso, claro, impõe um desafio monumental aos Estados Unidos. Em alguns segmentos, a dependência das importações chinesas consegue ameaçar a segurança nacional americana. É o caso do sistema de saúde. Nos Estados Unidos, mais de 50% dos suprimentos médicos críticos (máscaras, luvas, seringas, cateteres, etc) vêm da China. Se uma hecatombe atingir as relações de Washington e Pequim, e os chineses decidirem suspender as exportações desses insumos, os estoques dos Estados Unidos poderiam se esgotar em questão de semanas, o que paralisaria o seu sistema de saúde.
Esse desequilíbrio também possui ramificações geopolíticas. A capacidade de produzir bens estratégicos em massa – de eletrônicos a equipamentos militares – dá à China um papel de influência global que desafia o poder americano.
O trumpismo não foi o primeiro movimento político a detectar esse problema. Hoje, o enfrentamento econômico à China é uma das poucas pautas unânimes em Washington, capaz de unir progressistas, conservadores e trumpistas. O que o trumpismo trouxe de diferente a essa questão foi apresentar uma posição heterodoxa para a sua solução.
Até o surgimento do trumpismo, era ponto pacífico em Washington que a China é um esforço coletivo, não unilateral.
Para conter a produção da manufatura chinesa, é preciso fortalecer a relação dos Estados Unidos com os seus parceiros comerciais para redistribuir a produção global de bens críticos. E isso significa duas coisas:
- abrir frentes de cooperação produtiva com o México, o Brasil, a Índia, o Vietnã e outros países emergentes da Ásia, para suplantar o ecossistema de manufatura chinês, e
- fortalecer os vínculos com o Canadá, o Reino Unido, a União Europeia, o Japão e a Coreia do Sul.
Quando os Estados Unidos desenham alianças para que a manufatura de bens críticos fique espalhada entre nações aliadas, diminui o peso da China no mundo.
Quando os Estados Unidos coordenam políticas industriais, militares e de comércio com os seus parceiros ricos, limitam a capacidade de Pequim explorar divisões entre eles.
Reforçar a capacidade produtiva interna, sem coordenar essa agenda com o restante do mundo, é uma política altamente ineficiente. Realizar esse movimento piorando conscientemente os laços dos Estados Unidos com os seus parceiros históricos, gerando imprevisibilidade e antipatia, praticando o bullying e o isolamento, dificultando a integração comercial do Ocidente, é um caso de suicídio nacional. É como Trump age.
É por isso que, apesar da banca, o que o governo americano vem fazendo é o exato oposto de enfrentar a ascensão econômica de Pequim. Trump é, pelo contrário, o grande artífice do século chinês.