Ucranianos usam Google Tradutor para ler manuais de armas enviadas pela Otan

Armamento de última geração tem chegado ao país desde a invasão russa, mas capacidade de operação das tropas ainda é um obstáculo no front

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Por Thomas Gibbons-Neff e Natalia Yermak
Atualização:

THE NEW YORK TIMES, Kherson, UCRÂNIA - Desde a invasão russa, as nações da Otan atualizaram o arsenal da Ucrânia com equipamentos cada vez mais sofisticados (e com novos envios programados), como avançados sistemas de foguetes de lançamento múltiplo prometidos pelos EUA e pelo Reino Unido.

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Mas treinar soldados para usar o equipamento tornou-se um obstáculo significativo e crescente - enfrentado diariamente pelo sargento Dmitro Pisanka e sua equipe, que operam uma arma antitanque envelhecida e camuflada por cercas e vegetação rasteira no sul da Ucrânia.

Espiando pela mira presa à arma, o sargento Pisanka visualiza um caleidoscópio de números e linhas que, se lidos corretamente, devem fornecer os cálculos necessários para disparar contra as forças russas. No entanto, erros são comuns no caos da batalha.

Há mais de um mês, os comandantes de sua unidade de artilharia da linha de frente conseguiram uma ferramenta muito mais avançada: um telêmetro a laser de alta tecnologia fornecido pelo Ocidente para ajudar na segmentação.

Mas há um problema: ninguém sabe como usá-lo.

Soldado ucraniano cobre unidade de artilharia com camuflagem em Kherson. Foto: Tyler Hicks/The New York Times

“É como receber um iPhone 13 e só poder fazer ligações”, disse o sargento Pisanka, claramente irritado.

O telêmetro, chamado JIM LR, é como um par de binóculos de alta tecnologia e provavelmente faz parte da parcela de equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos, disse o sargento.

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Pode parecer uma escolha perfeita para ajudar a fazer melhor uso do canhão antitanque, construído em 1985. Ele pode ver alvos à noite e transmitir sua distância, direção e coordenadas de GPS. Alguns soldados aprenderam o suficiente para operar a ferramenta, mas depois mudaram para outras unidades nos últimos dias, deixando o grupo de artilharia com um peso de papel caro.

Tenho tentado aprender a usá-lo lendo o manual em inglês e usando o Google Tradutor para entendê-lo

Dmitro Pisanka, sargento do Exército ucraniano

Na segunda-feira, o Reino Unido prometeu enviar lançadores móveis de múltiplos foguetes à Ucrânia, melhorando o alcance e a precisão da artilharia ucraniana, dias depois que o presidente dos EUA, Joe Biden, comprometeu-se a enviar armas semelhantes.

As novas armas mais avançadas da Ucrânia estão concentradas na região leste de Donbas, onde os combates mais ferozes acontecem enquanto as forças de Vladimir Putin, aproximando-se do leste, norte e sul, tentam esmagar um bolsão de território ucraniano. Na ponta leste da área, os dois lados travaram uma batalha pela cidade devastada e praticamente abandonada de Severodonetsk.

No fim de semana, as tropas ucranianas recuperaram algum terreno na cidade, segundo analistas ocidentais e autoridades ucranianas. Mas na segunda-feira, os ucranianos foram forçados a recuar novamente quando os militares russos aumentaram seu já intenso ataque de artilharia, de acordo com Serhi Haidai, administrador da Ucrânia para a região.

Um dia após uma visita arriscada às tropas em Lisichansk, perto de Severodonetsk, o presidente Volodmir Zelenski fez uma avaliação do conflito na segunda-feira: “Há mais deles. Eles são mais poderosos. Mas temos todas as chances de lutar nessa direção.”

Militares ucranianos reunidos em base de unidade antitanque em Kherson. Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Os líderes da Ucrânia frequentemente pedem armas e equipamentos ocidentais de ponta, depositando suas esperanças de vitória em pedidos de novos mísseis guiados antitanque, obuses e foguetes guiados por satélite.

Mas além da necessidade de equipamentos de guerra, as tropas ucranianas precisam saber como usá-las. Sem treinamento adequado, o mesmo dilema enfrentado pela unidade do sargento Pisanka e seu telêmetro solitário é difundido em uma escala muito maior. Analistas dizem que isso pode ecoar a abordagem fracassada dos Estados Unidos de fornecer aos militares afegãos equipamentos que não poderiam ser mantidos sem apoio logístico maciço.

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“Os ucranianos estão ansiosos para empregar equipamentos ocidentais, mas é preciso treinamento para mantê-los”, disse Michael Kofman, diretor de estudos russos do C.N.A., um instituto de pesquisa em Arlington, Virgínia. “Algumas coisas não são fáceis de apressar”.

Os Estados Unidos e outros países da Otan deram treinamento extensivo aos militares ucranianos em anos anteriores à guerra, embora não sobre algumas armas avançadas que estão sendo enviadas agora. De 2015 ao início deste ano, dizem oficiais militares dos EUA, instrutores americanos treinaram mais de 27.000 soldados ucranianos no Centro de Treinamento de Combate Yavoriv, perto de Lviv. Havia mais de 150 conselheiros militares americanos na Ucrânia quando a Rússia invadiu em fevereiro, mas eles foram retirados.

Desde o início da guerra, os Estados Unidos prometeram cerca de US$ 54 bilhões (cerca de R$ 265 milhões) em ajuda à Ucrânia e forneceram armas e equipamentos, mais recentemente vários lançadores de foguetes móveis Himars, um movimento recebido com rápida condenação do Kremlin.

Mas, para evitar um confronto mais direto com a Rússia, o governo Biden até agora se recusou a enviar conselheiros militares de volta à Ucrânia para ajudar a treinar as forças ucranianas a usar novos sistemas de armas e, em vez disso, confiou em programas de treinamento fora do país.

Unidade de artilharia antitanque em Kherson tenta superar falta de treinamento para usar armas ocidentais. Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Isso colocou uma enorme pressão sobre soldados ucranianos como o sargento. Andri Mikita, membro da guarda de fronteira do país que, antes da guerra, recebeu breve treinamento de conselheiros da Otan sobre as avançadas armas antitanque britânicas, conhecidas como NLAWs.

Agora ele corre as posições da linha de frente tentando educar seus companheiros sobre como usá-las. Em muitos casos, disse ele, os soldados ucranianos aprenderam a usar algumas armas, incluindo as NLAWs, por conta própria, usando vídeos online e a prática no campo de batalha.

Mas existem tipos de armas que você não pode aprender com a intuição: mísseis terra-ar, artilharia e alguns equipamentos

Andri Mikita, sargento ucraniano

Em entrevista por telefone, Mikita completou: “Precisamos de cursos formais”.

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As necessidades da Ucrânia são palpáveis na região onde a unidade do sargento Pisanka está localizada, a nordeste da cidade de Kherson, ocupada pelos russos. A área foi o local de uma breve ofensiva ucraniana na semana passada que desacelerou assim que os russos em retirada destruíram uma ponte importante; a falta de artilharia de longo alcance dos ucranianos impediu que eles tentassem uma difícil travessia do rio em perseguição, disseram oficiais militares ucranianos.

Para a equipe de artilharia do sargento Pisanka, o único instrutor disponível para o telêmetro a laser era um soldado que ficou para trás com outra unidade e teve tempo para traduzir a maior parte do manual de instruções de 104 páginas. Mas ainda é tentativa e erro, pois eles descobrem qual combinação de botões faz o quê, enquanto procuram soluções ad hoc para resolver a falta de um tripé de montagem e monitor de vídeo (ambos anunciados no manual de instruções).

“Se você estiver trabalhando longas distâncias segurando-o com a mão, às vezes ele pode transmitir números imprecisos”, disse o sargento Pisanka. “É mais seguro”, acrescentou, “trabalhar quando o equipamento está posicionado no tripé de frente para o inimigo e o operador está trabalhando com o monitor coberto”.

O JIM LR, fabricado pela empresa francesa Safran, parece um cruzamento entre um óculos de realidade virtual e binóculos tradicionais, e pode ser usado junto com um aplicativo de mapeamento em um tablet que as tropas ucranianas usam para ajudar a convocar ataques de artilharia.

Com cerca de seis quilos, é muito menor do que o obus M777 155 mm de quatro toneladas e meia, fornecido pelos EUA, que recentemente chegou à linha de frente no leste da Ucrânia. Mas ambos os equipamentos têm complexidades que lembram as complicações decorrentes do fornecimento de material estrangeiro a um militar.

Soldados ucranianos disparam artilharia com o Howitzer M777 155mm na região de Donetsk. Foto: Ivor Prickett/The New York Times

O M777 é altamente móvel e capaz de disparar a longas distâncias, mas o treinamento tem sido um gargalo na implantação dos obuses, dizem oficiais ucranianos. Em cursos na Alemanha que duravam uma semana, os Estados Unidos treinaram soldados para disparar a arma e outros para mantê-la.

Mas um descuido quase atrasou toda a manutenção das armas nas linhas de frente de difícil acesso, disseram oficiais ucranianos. Toda a máquina M777 é montada com equipamento que segue o sistema métrico usado nos Estados Unidos, o que significa que usar uma chave métrica ucraniana é difícil e arrisca danificar o equipamento.

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Somente depois de enviar as armas, os Estados Unidos providenciaram um carregamento apressado de caixas de ferramentas de chaves de calibre imperial (o utilizado nos EUA), disse o major Vadim Baranik, vice-comandante de uma unidade de manutenção.

Mas as ferramentas podem ser extraviadas, perdidas ou destruídas, potencialmente deixando as armas inoperantes, a menos que alguém consiga uma chave fornecida pelos EUA.

Além disso, o JIM LR, capaz de exibir dados de alvos extremamente precisos, fornece as informações, conhecidas como coordenadas de grade, em um formato da Otan amplamente usado que o sargento Pisanka precisa converter para o sistema de coordenadas da era soviética usado nos mapas dos ucranianos. Esses pequenos atrasos e o aumento de chance de erro se somam, especialmente quando sob o estresse de uma barragem de artilharia russa.

Por enquanto, o sargento Pisanka está focado em aprender o telêmetro. Em sua pequena fatia da guerra, as armas e equipamentos fornecidos pelo Ocidente estão limitados a um pequeno número de foguetes antitanque e kits de primeiros socorros.

“Não podemos ostentar o mesmo tipo de recursos que existem no leste”, disse o major Roman Kovaliov, vice-comandante da unidade que supervisiona a posição de armas do sargento Pisanka. “O que a Ucrânia ganha, só podemos ver na TV. Mas acreditamos que mais cedo ou mais tarde ele vai aparecer aqui.”