The Economist: Por que alguns chineses estão fartos da covid?

A dinâmica política por trás do atrapalhado lockdown de 25 milhões de pessoas em Xangai

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Por The Economist
5 min de leitura

Uma das consequências de impor um lockdown pandêmico sobre Xangai, a cidade mais cosmopolita e mal-humorada da China, é uma torrente de vídeos de smartphones mostrando autoridades locais sendo cobradas aos berros pelos cidadãos locais. Enquanto esta metrópole de 25 milhões de habitantes chega a quase um mês de paralisação, essas confrontações filmadas assumiram um tom mais obscuro.

Publicações em redes sociais mostram moradores trancados berrando com delegações de autoridades em visita aos seus condomínios, reclamando que não têm comida ou que as rações de alimentos que o governo lhes entrega chegam podres às suas casas.

Há vídeos de cidadãos de Xangai derrubando as cercas que subitamente apareceram em torno de quarteirões residenciais e vias públicas classificados como locais de “quarentena rígida” após casos de covid ocorrerem nas regiões. Outros moradores filmaram vizinhos sendo espancados por guardas vestidos com macacões brancos por desafiar controles pandêmicos.

Um blogger de Xangai lançou uma compilação chamada “Vozes de abril”, com seis minutos repletos de slogans de protesto entoados das janelas dos apartamentos, imagens de cidadãos reclamando registradas em lúgubres centros de quarentena, gravações de telefonemas angustiados para linhas de atendimento do governo e outros momentos de descontentamento.

Compartilhada amplamente como vídeo online, a colagem teve mais de 100 milhões de visualizações antes dos censores iniciarem o esforço de deletar todas as versões que conseguiram encontrar. E essa resposta draconiana foi um gol contra, já que até mesmo internautas relativamente isolados e apolíticos de todo o país puderam vislumbrar a censura operando em tempo real.

Trabalhadores em trajes de proteção andam de triciclo elétrico em uma rua durante o bloqueio, em meio à pandemia, em Xangai, China, 29 de abril de 2022 Foto: REUTERS/Aly Song

Essas raras demonstrações públicas de descontentamento na estritamente controlada China chegaram às manchetes de todo o planeta. Nos arborizados distritos das embaixadas em Pequim, 1,1 mil quilômetros ao norte de Xangai, diplomatas perguntam um ao outro se uma crise paira sobre o governante Partido Comunista. À medida que os controles pandêmicos da China tornam-se cada vez mais abertamente repressivos, alguns estrangeiros imaginam se a crescente brutalidade indica um mau funcionamento das engrenagens do Estado.

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A portas fechadas, diplomatas e diretores de empresas estrangeiras discutem a possibilidade de uma perda coletiva de confiança na competência do partido poder complicar o grande evento político do ano: o congresso que deverá coroar Xi Jinping como líder-supremo da China por mais cinco anos, ou até mesmo de maneira vitalícia. Algumas dessas perguntas não são adequadas para este momento.

Se a China fosse um país com imprensa livre, oposição funcional ou um sistema político que desse qualquer importância a direitos individuais, um cenário de fome em massa em Xangai, a mais afluente do país, seria em si uma vulnerabilidade para para Xi — especialmente quando lockdowns concomitantes impostos sobre dezenas de cidades menos privilegiadas acrescentam-se à planilha chinesa de custos e benefícios do controle da pandemia.

Afinal, Xi tem sido idolatrado por dois anos pela propaganda do governo como “comandante-chefe da guerra do povo” contra a covid, cujas rigorosas mas benevolentes estratégias salvaram milhões de vidas, demonstrando a superioridade do governo do Partido Comunista sobre democracias ocidentais decadentes e obcecadas com liberdade.

Mas na China como ela é, imagens de cidadãos de Xangai sendo espancados com porretes enquanto derrubam cercas não significam em si que o maquinário do poder chinês esteja falhando. Ordens intransigentes, arbitrárias ou até irracionais que têm de ser obedecidas são uma característica do regime do Partido Comunista funcionando como deve, não uma anomalia.

A resposta da China à covid é um experimento utilitarista. Para impedir que o vírus matasse milhões em um país repleto de idosos mal vacinados e enfermos e com um sistema público de saúde fraco, os líderes chineses passaram dois anos trancando as cidades e regiões que tiveram o azar de registrar casos. Em troca, a maioria do 1,4 bilhão de chineses viveu numa sociedade ordenada e em grande medida livre da covid, apesar de marcada por vigilância intrusiva e monitoramento de movimentos — o que jamais seria aceito pela maioria dos ocidentais.

No majoritário sistema chinês, minorias que resistem ao partido devem ser esmagadas. Em outros contextos, essas minorias podem ser étnicas, religiosas ou ideológicas — ou compostas por tipos desafortunados que conformam uma prioridade para o partido. Em todos os casos, dissidência é considerada sabotagem. Algumas demonstrações de fúria em Xangai certamente emanam do choque que cidadãos locais sentem ao se verem do lado errado da divisão minoritária-majoritária desta vez.

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Se houvesse menos paranoia, as queixas de Xangai poderiam tranquilizar, de certa maneira, os líderes do partido. Cidadãos que são filmados berrando com autoridades estão exigindo mais ajuda do governo, não conclamando alguma revolução. Mesmo as silenciadas “Vozes de abril” dificilmente são subversivas. Esse vídeo mostra gravações de moradores de Xangai implorando para as autoridades internarem seus entes queridos em hospitais ou distribuírem rações alimentares como foi prometido. Funcionários do partido são ouvidos pedindo que seus superiores emitam ordens melhores.

Em um outro vídeo, um motorista de caminhão agradece um policial gentilmente por lhe trazer comida. Essas vozes dialogam com a tradição chinesa de cidadãos peticionando quem ocupa o poder por ajuda ou reparação. Mesmo assim, elas foram censuradas.

O Plano B é o Plano A com cercas e porretes

As vozes furiosas da China tampouco estão acusando os caciques do partido de ter cometido um erro ao perseguir a estratégia de covid zero até agora. Em vez disso, a maioria expressa decepção a respeito dessa política estar funcionado mal em Xangai e outras cidades; e alarme por ela estar acentuando custos econômicos e sociais. Não ajuda que os chefes do partido tenham passado dois anos reivindicando exageradamente políticas que sempre foram a opção menos pior num país com problemas crônicos de saúde como a China.

Em vez de reconhecer honestamente os sacrifícios inerentes à sua rígida abordagem, autoridades e meios de comunicação oficiais qualificaram-na como uma escolha sábia e gentil, que beneficia todos os chineses. E então, essas mesmas autoridades voltaram a se apoiar na sua narrativa pandêmica preferida: os muitos lados negativos das respostas do Ocidente à covid. Agora, as desvantagens das políticas chinesas estão ficando difíceis de esconder.

Se a história do partido serve como guia, a insatisfação do público em si dificilmente significa uma ameaça para os líderes chineses. O descontentamento popular importa quando dá cobertura a facções rivais da elite, permitindo-as argumentar que o desempenho ruim está minando o direito do partido governar. Um 20.º Congresso do Partido Comunista Chinês impecável para Xi, no fim deste ano, pode depender da eliminação de todos os possíveis rivais e de jogar sobre outros a responsabilidade caso a covid continue a assolar a China. Antes disso, se os líderes do partido estão de qualquer maneira vulneráveis, é porque parecem incompetentes, não porque sua desumanidade foi registrada em vídeo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL