Opinião | Trump deveria aprender as lições de Putin na Ucrânia

Como Putin, Trump é movido por um ressentimento profundo com a ordem liberal internacional construída pelos Estados Unidos no pós-guerra

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Por Carlos Gustavo Poggio

Vladimir Putin acreditava que a invasão da Ucrânia seria rápida. Cercado por assessores bajuladores e envenenado por sua própria propaganda, calculou que Kiev cairia em dias, que a Otan se mostraria dividida, e que o Ocidente aceitaria, com alguma retórica, a nova realidade imposta pela força. O resultado, como sabemos, foi o oposto.

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Dois anos depois, a guerra se arrasta, com centenas de milhares de baixas e a Rússia mergulhada num atoleiro estratégico. O país tornou-se, para muitos, um pária. Ainda assim, Putin alcançou um feito notável: destruiu os resquícios da ilusão europeia de um mundo pós-moderno, regido por normas e interdependência.

O que Putin queria — uma Ucrânia neutra e uma Otan em retirada — virou seu contrário. Hoje, Suécia e Finlândia, países que durante décadas se recusaram a integrar a aliança atlântica, são membros plenos. A Finlândia, com seus 1.340 km de fronteira com a Rússia, rompeu décadas de neutralidade e agora abriga tropas da aliança diretamente às portas de São Petersburgo. A Suécia, neutra por mais de dois séculos, seguiu o mesmo caminho. Essas decisões não foram resultado de pressão americana, mas de um profundo choque psicológico e geopolítico.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de uma reunião de seu gabinete, na Casa Branca  Foto: AP / AP

Essa lição deveria servir de alerta para Donald Trump.

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Como Putin, Trump é movido por um ressentimento profundo com a ordem liberal internacional construída pelos Estados Unidos no pós-guerra. Mas há uma diferença fundamental: Putin combate uma ordem que o marginaliza; Trump combate uma ordem que seu país criou. É como destruir a própria casa por raiva dos inquilinos.

Ambos acreditam que essa ordem serve a interesses alheios — europeus, burocráticos, globalistas. Ambos querem substituí-la por algo mais favorável a seus países, definidos de forma mais estreita, mais nacionalista, mais transacional. E ambos estão convencidos de que, se tiverem vontade política suficiente, o mundo se adaptará.

Mas mesmo Putin, autocrata que é, entendeu que não poderia bancar esse desafio sozinho. Preservou cuidadosamente a relação com a China e buscou manter canais com outros países não alinhados. Trump, por outro lado, declarou guerra econômica ao mundo inteiro. Seus assessores repetem que “os outros precisam dos EUA, mas os EUA não precisam de ninguém”. Trump não busca aliados; ele deseja subordinados que se humilhem diante dele, como ele mesmo deixou claro em um discurso recente.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião no Kremlin  Foto: Vyacheslav Prokofyev/AFP

O presidente americano afirmou que líderes estrangeiros estão “me beijando o traseiro” e implorando por acordos comerciais, dizendo: “Por favor, por favor, senhor, faça um acordo. Eu farei qualquer coisa. Eu farei qualquer coisa, senhor!” A China já respondeu com tarifas significativas. A União Europeia, tradicional aliada, acaba de anunciar medidas retaliatórias. O que vemos é o início de uma espiral. E o mais alarmante: conhecendo Trump, sabemos que ele não vai recuar. Não importa o custo. Essa é uma lição que seus antigos sócios, credores e até cidades inteiras aprenderam à força ao longo de sua trajetória empresarial.

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As tarifas anunciadas por Trump — as mais altas desde o século XIX — não são apenas uma ruptura com as regras da OMC ou com acordos comerciais firmados. Elas marcam um rompimento simbólico com o papel histórico dos EUA como garantidores da estabilidade econômica global. Não se trata apenas de protecionismo. É uma guinada civilizacional.

A forma como essas tarifas foram impostas — unilaterais, arbitrárias, contraditórias — reforça a percepção de que os EUA deixaram de ser previsíveis. Seus próprios assessores se contradizem em público. Uns dizem que as tarifas são permanentes. Outros, que são uma tática de negociação. Alguns dizem que vão arrecadar bilhões. Outros, que visam tarifa zero. Há quem fale em segurança nacional. Outros invocam reciprocidade. A única constante é o próprio Trump — seu instinto, seu ressentimento, sua vaidade.

Guindastes descarregam contêineres de carga do navio porta-contêineres ONE Hannover no Porto de Los Angeles em San Pedro, Califórnia Foto: Patrick T. Fallon/AFP

Sem filtros

Em seu primeiro mandato, Trump era parcialmente contido por figuras do establishment republicano — como Pence, Mattis ou Kelly. Hoje, o trumpismo governa sozinho, sem filtros nem freios. Seus conselheiros são leais ao homem, não ao cargo. O resultado é previsível: decisões impulsivas e mal calculadas, guiadas por interesses pessoais e por uma visão de mundo que mistura nostalgia com revanche.

Trump acredita que pode redesenhar a economia global com canetadas. Aposta que a força bruta da economia americana é suficiente para reordenar o tabuleiro internacional. O resultado é que a confiança dos parceiros comerciais dos EUA está corroída. Investidores hesitam. Cadeias produtivas se reconfiguram. E não há mais garantias de que os Estados Unidos respeitarão compromissos — mesmo os assinados.

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O impulso de Trump se aproxima do de Putin: derrubar um sistema que limita seu poder e substituí-lo por algo moldado à sua imagem. A diferença é que, enquanto Putin atua como autocrata, Trump ainda opera dentro de uma democracia. Mas o risco é semelhante: destruir um sistema sem saber o que virá depois.

O desmonte da ordem liberal internacional pode não vir por meio de uma guerra aberta, mas sim por um processo contínuo de corrosão — decisões unilaterais, ataques sistemáticos às instituições, abandono de compromissos. Donald Trump parece determinado a dar o empurrão final.

Como dizia o personagem de Ernest Hemingway em O Sol Também se Levanta, o colapso vem “aos poucos, depois de repente”. A frase, que descrevia a ruína pessoal, tornou-se uma metáfora clássica do declínio de impérios — e é apropriada aqui. O Império Britânico, por exemplo, não caiu em uma única batalha ou evento, mas por meio de erosões graduais em sua capacidade de liderar e manter alianças, até que a realidade de sua perda de hegemonia se impôs de forma abrupta.

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Trump parece acelerar esse processo para os Estados Unidos. Ao enfrentar não só adversários como China, mas também aliados históricos como a União Europeia, ao corroer regras e tratados que ele mesmo assinou, e ao tratar acordos internacionais como contratos de cassino, Trump conduz a potência americana para um caminho que se parece cada vez mais com o do Império Britânico. A diferença é que, desta vez, o colapso pode não ser só gradual ou repentino — pode ser voluntário.

Opinião por Carlos Gustavo Poggio

Doutor em Relações Internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, professor de ciência política do Berea College e autor de 'O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos' e 'Brazil, the United States, and the South American Subsystem: Regional Politics and the Absent Empire'

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