THE NEW YORK TIMES — A Suprema Corte considera pautar questão da imunidade presidencial — ou seja, a ideia de que um presidente, em virtude da natureza singular de sua função, tem direito a proteções extremamente amplas em relação a consequências legais por declarações feitas e ações adotadas enquanto ocupa o cargo. O tribunal superior pautar essa questão em algum caso envolvendo Donald Trump surtirá consequências profundas tanto na eleição de 2024 quanto na questão maior sobre o poder presidencial.
Para avançar com o caso sobre o 6 de Janeiro envolvendo Trump, o promotor especial Jack Smith quer pular um passo na corte de apelações e fazer com que a Suprema Corte decida sobre essa questão crítica, já que uma decisão favorável a Trump encerraria o caso. Um adiamento prolongado poderia surtir o mesmo efeito, evitando que o julgamento de Trump ocorra antes da eleição e permitindo-lhe cancelar o processo se vencer.
O tribunal superior também poderá ser questionado a respeito de imunidade presidencial em um contexto cível, após a Corte de Apelações dos Estados Unidos para o Circuito do Distrito de Colúmbia (DC Circuit) rejeitar argumentos de imunidade de Trump.
A Suprema Corte deve deliberar sobre a questão da imunidade presidencial e deve fazê-lo em passo acelerado. Sua decisão poderia não apenas afetar a probabilidade de Trump ser julgado antes da eleição de 2024, mas também mandar sinais importantes a respeito da corte posicionar-se ou não como bastião contrário a algumas das afirmações mais extremas da autoridade executiva se um segundo mandato for concedido a Trump.
Nesse sentido, esse caso envolve não apenas uma possível responsabilização pelo 6 de Janeiro, mas também se e como a lei e as cortes processarão Trump se ele retornar à presidência — assim como futuros ocupantes do cargo.
Para nenhuma surpresa, Trump lançou uma posição absolutista. Resumido-se à sua essência, seu argumento nos casos criminais e cíveis contra ele é o silogismo de Richard Nixon: “Quando o presidente faz, não é ilegal”.
A experiência recente deixa claro que os ministros da Suprema Corte são mais que capazes de mover-se rapidamente quando consideram um caso suficientemente urgente: “certiorari antes de julgamentos” era coisa rara, mas a corte tem se mostrado mais que disposta em permitir que partes evitem as cortes de apelação nos anos recentes. O professor de direito Steve Vladeck registra 19 ocasiões em que a Suprema Corte decidiu favoravelmente a petições desse tipo desde 2019.
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Ontem, a DC Circuit sinalizou interesse em uma resolução célere à questão da imunidade, agendando argumentações orais para 9 de janeiro. A Suprema Corte não precisa aguardar a decisão desse tribunal antes de agir — mas agendando para antes ou depois da DC Circuit sua tomada de decisão, é crítico para a Suprema Corte não tardar.
Comprometido em mover-se rapidamente, o tribunal superior pode abordar a questão da imunidade presidencial em um cronograma que ou facilitará ou evitará um julgamento e veredicto no caso criminal antes dos eleitores acudirem às urnas e talvez até antes do Partido Republicano ter selecionado seu candidato presidencial. (A corte também deveria acelerar sua análise de um caso relacionado ao 6 de Janeiro que concordou em considerar na semana passada, envolvendo uma acusação contra um homem suspeito de obstruir um procedimento oficial. Essa acusação também está em questão em duas acusações contra Trump, então o caso tem implicações óbvias para o julgamento e veredicto de Trump.)
A ideia da imunidade presidencial sempre coexistiu, ainda que desconfortavelmente, com a tradição constitucional dos EUA. Conforme notou uma opinião da juíza Tanya Chutkan sobre o caso criminal do 6 de Janeiro, Alexander Hamilton, defensor de um Executivo muscular, enfatizou a diferença entre rei e presidente escrevendo que, para um rei, “não existe nenhum tribunal constitucional ao qual ele seja passível; nenhuma punição à que ele seja sujeito”. Um presidente, em contraste, não dispõe de tais proteções.
Não obstante, o Judiciário e o Executivo fabricaram uma doutrina de imunidade presidencial usando um raciocínio amplamente pragmático — fundamentado não no texto constitucional nem na história, mas nas necessidades e demandas da presidência contemporânea — para erguer um conjunto de proteções que se atrelam ao presidente sob determinadas circunstâncias.
Em 1974, no caso EUA versus Nixon, a Suprema Corte deixou claro que nenhum princípio constitucional apoiava “um privilégio presidencial absoluto e injustificado de imunidade em relação a um processo judicial sob quaisquer circunstâncias”. Mas a corte concluiu que certos princípios pragmáticos e estruturais — a necessidade de presidentes receberem conselhos sinceros de seus conselheiros, a importância de proteger cada poder da ingerência dos demais — fundamentaram a existência de uma capacidade presidencial qualificada, normalmente conhecida como privilégio executivo, para proteger certas informações de revelações obrigatórias.
O segundo caso nessa linha, Nixon versus Fitzgerald, teve a ver com um processo cível aberto por um ex-funcionário do governo federal contra Nixon alegando que, quando era presidente, ele se envolveu em sua demissão injusta. Naquele caso, a corte anunciou uma imunidade absoluta em relação a qualquer responsabilização e reparação pelos atos oficiais do presidente. Explicando que um temor constante de processos judiciais poderia “distrair um presidente de seus deveres públicos”, para detrimento do presidente, da presidência e do país, a corte decidiu que a imunidade era “um incidente funcionalmente atribuído ao gabinete singular do presidente”.
Ainda assim, explicou a corte, essa imunidade se aplica apenas para condutas dentro do “perímetro mais extrínseco” da responsabilidade oficial do presidente — ou seja, não abrange condutas puramente privadas ou extraoficiais.
Se a opinião fraturada em Fitzgerald deixou abertas algumas questões, em Clinton versus Jones (envolvendo Bill Clinton) a Suprema Corte deixou claro que o presidente não está além do alcance da lei, particularmente quando a conduta em questão não é oficial — nesse caso, predando a presidência. A corte, rejeitando esforços de Clinton para adiar o processo de assédio sexual movido por Paula Jones para depois de seu mandato, não se comoveu com o prospecto de interferências e distrações em deveres presidenciais. Exigir de um presidente na função que participe de um litígio originado de uma conduta anterior ao período presidencial, raciocinou a corte, não “equivale ao nível de depreciação constitucionalmente proibida da capacidade do Executivo realizar suas funções determinadas constitucionalmente”.
Em 2020, uma maioria de 7 a 2 em Trump versus Vance rejeitou o argumento de Trump de que ele não tinha de cooperar com uma intimação para depor em um caso criminal processado na esfera estadual. E a corte foi unânime em rejeitar os argumentos de Trump por imunidade absoluta.
Cada um desses casos identificou razões para limitar a disponibilidade de certos tipos de processos legais sobre presidentes na função e, em alguns casos, ex-presidentes. Mas nenhum chegou perto de anunciar o tipo de liberdade absoluta em relação a imputabilidade imposta judicialmente que Trump busca agora.
Além desses casos, o Escritório de Aconselhamento Legal do Departamento da Justiça adotou a posição de que um presidente na função é imune a processos criminais na esfera federal. Mas o departamento não crê, enfaticamente, que a lógica de sua posição estenda essa mesma imunidade para ex-presidentes.
A prática do Executivo confirma essa visão. Quando Gerald Ford perdoou Nixon, a terminologia de sua proclamação pressupôs que Nixon era elegível para ser processado por sua conduta enquanto ocupava a presidência. O texto notou que, “como resultado de certos atos ou omissões que ocorreram antes de sua renúncia ao cargo de presidente, Richard Nixon tornou-se passível de potencial indiciamento e julgamento por ofensas contra os Estados Unidos”. E o “perdão total, livre e absoluto” de Ford abrangeu quaisquer ofensas que Nixon “cometeu, possa ter cometido ou participado durante o período de 20 de janeiro de 1969 e 9 de agosto de 1974″ — ou seja, precisamente o período de sua presidência.
Sob a luz de tantos precedentes, as cortes inferiores que consideraram os argumentos de Trump por imunidade encontraram relativa facilidade para descartá-los. No caso criminal, a juíza Chutkan deixou claro que os precedentes da corte e a lógica constitucional básica estabelecem que o status de Trump enquanto ex-presidente não “lhe outorga um direito divino, de reis, para evadir-se da imputabilidade penal de governa seus concidadãos”.
No caso cível, apresentado por um grupo de ex-agentes da Polícia do Capitólio e congressistas prejudicados no 6 de Janeiro, um painel ideologicamente diverso da DC Circuit — incluindo o juiz Gregory Katsas, que foi nomeado por Trump e trabalhou em seu Escritório de Aconselhamento da Casa Branca — concluiu que a imunidade absoluta anunciada em Fitzgerald não requeria a dissolução imediata do processo cível contra Trump.
Para uma Suprema Corte que se considera moldada proximamente ao texto, à história e à tradição, a imunidade deve apresentar um caso fácil, e Trump deverá perder. Não há nada no texto constitucional que confira imunidade ao presidente (e o documento cria explicitamente outros tipos de imunidade). E nossa história e nossas tradições não dão fundamento à imunidade presidencial em casos como esses.
Se, não obstante, distorcer precedentes e princípios para endossar alguma versão da lógica de Trump — ou se facilitar um adiamento que implique funcionalmente no mesmo resultado — a Suprema Corte revelará o vazio no centro de seu professado método e se exporá como disposta a agir das maneiras mais covardes para fazer avançar prospectos eleitorais do principal pré-candidato republicano.
Isso também mandará uma mensagem assustadora, de que Trump poderá ser capaz de parte do que parece propenso a fazer em um segundo mandato — perseguir inimigos políticos, abusar da Lei da Insurreição, dizimar o serviço público — encorajado por saber que a Suprema Corte não será obstáculo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*Kate Shaw é redatora colaboradora do NYT, professora de direito na Cardozo Law School e apresentadora do podcast da Suprema Corte “Strict Scrutiny”.
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