Uma nova era de competição global surge sob a sombra de Trump

Política “America First” se contrapõe ao modelo de cooperação que pauta o Fórum Econômico Mundial em Davos

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Por Ishaan Tharoor (The Washington Post)

DAVOS, Suíça — Em meio à luz acinzentada da manhã nos Alpes Suíços, as elites globais despertaram para uma nova realidade. O presidente Donald Trump estava de volta à Casa Branca e já havia feito várias declarações com intenção disruptiva, emitido ordens executivas que revogaram regulamentações ambientais, retirado os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde e sinalizado novas tarifas sobre produtos do Canadá e do México, a serem impostas até o fim deste mês. Ele orientou o Departamento de Estado a alinhar sua política externa com uma agenda “EUA em Primeiro Lugar”.

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Trump aparecerá em Davos na quinta-feira para discursar virtualmente aos delegados no Fórum Econômico Mundial. Mas sua volta já permeia muitas discussões. Em uma sessão na terça-feira de manhã, o estudioso de política externa dos EUA Walter Russell Mead, de direita, gesticulava para uma sala de dignitários e executivos corporativos afirmando que a vitória política de Trump ressaltou como todos os presentes estão “perdendo”.

Mead disse que o espírito que animava os veteranos de Davos ali presentes — “o tipo genérico de intelectuais, profissionais e administradores que achavam que a história tinha acabado”, conforme ele afirmou, invocando o paradigma de um liberalismo triunfante popularizado pelo filósofo político Francis Fukuyama — está recuando. Seus sermões sobre a cooperação internacional, a ameaça das mudanças climáticas e as virtudes da globalização encontram cada vez menos público em outros lugares.

Participantes do Fórum Econômico Mundial assistem ao discurso de posse de Donald Trump no stand da Ucrânia em Davos.  Foto: Markus Schreiber/Associated Press

“Davos versus Washington”, declarou um editorial no diário francês Les Echos, apontando para a dicotomia inescapável entre as reuniões de ricos e poderosos tanto na posse de Trump quanto aqui nas montanhas suíças. “Davos, de um ponto de vista intelectual, é cada vez mais irrelevante”, disse-me Julien Vaulpré, fundador da empresa francesa de comunicação estratégica Taddeo e ex-assessor do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy. “A agenda era impulsionar a globalização, o livre-comércio e assim por diante — e isso foi feito. Agora há um retrocesso.”

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A multidão de Davos, de administradores de fundos a líderes políticos, está bem ciente dos ventos em mutação da política global. “A ordem mundial cooperativa que imaginamos há 25 anos não virou realidade”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em um discurso ao plenário. “Em vez disso, entramos em uma nova era de dura competição geoestratégica.”

Von der Leyen não mencionou Trump nenhuma vez pelo nome, mas a sombra do presidente pairou sobre os seus comentários. A principal autoridade da União Europeia conhece bem a antipatia de Trump pelo bloco — a aversão dele por suas regulamentações, seus fundamentos liberais, seus métodos de diplomacia e a erosão das soberanias nacionais na Europa. Em resposta à ascensão de Trump, Von der Leyen exaltou a centralidade do acordo climático de Paris (do qual a Casa Branca planeja sair novamente) e comemorou os recentes pactos comerciais da UE com o México e o bloco do Mercosul na América do Sul.

A mensagem era que, enquanto Trump e aliados ameaçam impor tarifas e ridicularizam a UE enquanto instituição, a Europa deve ficar unida e permanecer independente. “A escala continental é nosso maior trunfo em um mundo de gigantes”, disse Von der Leyen, concordando também com a crescente influência e poder da China. “As regras do embate entre as potências globais estão mudando”, acrescentou ela. “Não devemos achar que nada está garantido.”

O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, foi mais direto, colocando algumas questões em aberto: “Será que o presidente Trump vai se importar com a Europa? Ele considera a Otan necessária? E ele respeita as instituições da UE?” perguntou ele. Zelenski seguiu sua fala pedindo ao continente que “aprenda a cuidar totalmente de si mesmo”, aumentando seus gastos militares, sua capacidade industrial e unidade política diante de desafios em outras regiões.

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Presidente da Ucrânia Volodmir Zelenski questiona compromisso de Donald Trump com a Otan e alerta para segurança da Europa em Fórum de Davos.  Foto: Fabrice Coffrini/AFP

Os participantes de Davos de outras partes do mundo não se mostram tão inquietos em relação ao segundo mandato de Trump. Uma agenda “EUA em Primeiro Lugar” não é o problema, disse o primeiro-ministro do Catar, Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, argumentando que Trump também quer “tornar o Oriente Médio grande novamente”.

A ministra de Indústria, Comércio e Investimento da Nigéria, Jumoke Oduwole, disse estar disposta para negociar com o governo Trump e não expressou preocupação com as possíveis perturbações causadas por sua política externa pouco ortodoxa. “Para nós, é Nigéria em primeiro lugar, é África em primeiro lugar”, disse-me ela. “Consideramos isso mais em termos de oportunidades. Não estamos com medo, não estamos em pânico.”

A Nigéria, como muitos outros países africanos, tem relações estreitas com a China, mas Oduwole enfatizou que seu país não tem tempo para políticas divisivas entre blocos. “Há muitos interesses em competição pela Nigéria e pela atenção da África”, disse ela, apontando para a riqueza de sua própria nação em hidrocarbonetos e minerais essenciais, como o lítio. “Escutaremos com atenção o que nossos velhos e novos amigos têm a dizer — e os tipos de parcerias que estão sendo oferecidas.”

Samir Saran, presidente da Observer Research Foundation, um instituto de análise sediado na Índia com fortes ligações com o governo indiano, disse que Trump não é culpado de algumas das desigualdades que moldam o sistema global e irritam muitos no Sul Global. Seu estilo transacional de fazer política é revigorante para muitos países não ocidentais, disse ele.

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“A chegada de Trump, de muitas maneiras, nos oferece uma oportunidade de redefinir o tabuleiro de xadrez, realinhar as peças e criar uma nova ordem e um novo futuro”, disse-me Saran.

Ironicamente, o representante de uma grande potência que seguiu o roteiro tradicional de Davos foi o vice-primeiro-ministro chinês Ding Xuexiang. Ele subiu ao palco na terça-feira e definiu a China como um jogador confiável no sistema internacional, da mesma forma que o presidente Xi Jinping fez oito anos atrás, após a primeira vitória eleitoral de Trump. Ding descreveu a globalização como “uma tendência inevitável da história”. Em um aceno aos instintos mercantilistas de Trump, Ding afirmou que é um equívoco “canalizar as águas do oceano” para “lagos e riachos isolados” e disse que o protecionismo equivale a “se trancar em um quarto escuro”.

Um executivo corporativo da América do Sul que se sentou perto de mim no vasto salão do plenário deu risada: “Bem, estamos trancados neste aqui”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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