SAN PEDRO SULA, HONDURAS - Três estampidos ecoaram, seguidos por mais três em rápida sucessão. A rua ficou vazia. Um táxi fez uma manobra brusca e entrou na rua paralela. Uma criança pequena foi apanhada pela mãe e trazida para dentro. O autor dos disparos, um pistoleiro da MS-13, permaneceu calmamente na esquina em plena luz do dia, a única pessoa restante no cruzamento comercial.
Bryan, Reinaldo e Franklin correram para o terreno de um vizinho, afugentando as galinhas. Entre sussurros cheios de pânico, eles comentaram o tiroteio, o terceiro em menos de uma semana. Dias antes, uma criança tinha sido baleada em um ataque parecido. Bryan, 19 anos, pensava na resposta que os poucos jovens moradores do bairro poderiam dar, se é que alguma reação era possível.
Agora, a gangue Mara Salvatrucha, conhecida como MS-13, vinha atrás deles quase todos os dias. Lares eram saqueados, espiões eram mobilizados, e havia provocações ao anoitecer, com assobios lembrando-os constantemente que o inimigo estava muito próximo, pronto para atacar quando quisesse.
O bairro, composto por algumas ruas de terra em uma área do tamanho de alguns campos de futebol, estava cercado por todos os lados. No leste, a MS-13 planejava tomar conta da região. No sul, a gangue da rua 18 pensava em fazer o mesmo. Norte e oeste não apresentavam situação melhor. Havia gangues agressivas também nessas fronteiras.
Para Franklin, 19 anos, cuja família vive no local há gerações e está prestes a ser pai, o bairro era seu universo. Não era diferente para Reinaldo e Bryan. Os três tinham sido membros da gangue da rua 18, mas ficaram enojados com o cotidiano de assassinato, extorsão e roubo de seus vizinhos. Em busca de redenção, expulsaram a gangue do bairro. Agora, eram caçados.
Assim, para sua própria proteção, os jovens voltaram a formar uma gangue, revertendo àquilo que mais detestavam. “As fronteiras nos apertam como o nó de uma forca", disse Bryan, que forma o grupo Casa Blanca com esses amigos. “Não queremos as gangues aqui e, para garanti-lo, vivemos em conflito constante.”
Reinaldo, 22 anos, estava em alerta. “Muitos me perguntam por que lutar para defender esses terrenos", disse ele. “Respondo que não defendo o território. Estou lutando pela minha vida.” De 2018 até o início de 2019, o New York Times acompanhou os jovens da gangue Casa Blanca, nessa região de San Pedro Sula, Honduras, uma das cidades mais violentas do mundo, testemunhando suas tentativas de conter a investida das gangues.
O interesse da MS-13 no bairro estava ligado à venda de drogas. As outras gangues pensavam em extorsão e roubo. Mas os membros da Casa Blanca prometeram jamais permitir que seu bairro se torne presa dos bandidos novamente. E, se necessário, estavam dispostos a morrer por isso.
Quase ninguém tentava impedir a guerra iminente - nada de polícia e nenhum interesse do governo. A única pessoa trabalhando para detê-la era um pastor que, durante meio período, percorria o bairro no seu acabado carro amarelo, arriscando a vida para acalmar as facções inimigas.
“Não defendo nenhuma gangue", disse o pastor, Daniel Pacheco. “Defendo a vida.” A luta para proteger o bairro - pouco mais de quatro quarteirões de casas, terrenos baldios e algumas lojas vendendo salgadinhos e refrigerantes - é um microcosmo da inescapável violência enfrentada por milhões de pessoas em toda a América Latina.
Desde a virada do século, mais de 2,5 milhões de pessoas foram mortas na crise de homicídios que afeta a América Latina e o Caribe, de acordo com o grupo de pesquisas Instituto Igarapé. A região abriga apenas 8% da população mundial, mas é palco de 38% dos assassinatos. Ali ficam 17 dos 20 países mais mortíferos do mundo.
E, em apenas sete países latino-americanos - Brasil, Colômbia, Honduras, El Salvador, Guatemala, México e Venezuela - a violência provocou mais mortes que as guerras no Afeganistão, Iraque, Síria e Iêmen somadas. Quase todos os assassinatos ocorrem em meio a um clima de impunidade que, em alguns países, decorre do fato de mais de 95% dos homicídios permanecerem sem solução. “Só há um jeito de acabar com isso", disse Reinaldo. “Se não os matarmos, eles nos matam.”
‘Na próxima vez, vão me matar’
Os homens entraram sem dizer uma palavra, abrindo caminho com seus fuzis AK-47 pela fina cortina que pendia na porta da frente de Fanny. Ela emitiu um grito abafado enquanto eles se espalhavam pela casa. Depois do tiroteio na véspera, o pistoleiro viu Bryan, Reinaldo e Franklin correndo para os fundos da casa de Fanny. Agora era noite, e Fanny, mãe solteira de três crianças, estava sozinha. Os homens fizeram uma última busca por membros da Casa Blanca, e então partiram.
A mensagem era mais aterrorizante pelo seu silêncio: eles podiam ir e vir à vontade. Tremendo de medo, ela telefonou para o primo, pastor Pacheco. “Na próxima vez, vão me matar, tenho certeza", ela lhe disse. Na maioria dos dias, Pacheco, conhecido na região como pastor Danny, transita de carro entre os territórios das gangues. Em mais de uma ocasião, intercedeu quando a polícia estava espancando membros das gangues, ou se colocou entre gangues rivais determinadas a matar uma à outra.
O pastor conhecia muitos dos integrantes da Casa Blanca e reconhecia o dilema enfrentado por eles. Também era seu desejo evitar que as gangues tomassem conta do bairro, mas ele era realista: não havia como mantê-las longe. A MS-13 estava tomando grandes partes de San Pedro Sula. Na perspectiva dele, o território da Casa Blanca seria o próximo.
A Casa Blanca contava agora com menos de uma dúzia de integrantes. Alguns tinham sido mortos, outros, presos. Os restantes eram os menos experientes em se tratando de enfrentar outras gangues. Alguns mal tinham idade para se barbear. O pastor Danny considerou bom sinal o fato de a MS-13 não ter ferido Fanny. Mas a súbita escalada era preocupante. Haveria mais balas e mais corpos. Disso ele tinha certeza. Assim, o pastor pensou em um plano: ele queria negociar uma reunião entre membros da Casa Blanca e da MS-13, a gangue que ameaçava suas vidas.
‘A vida era boa’
Anner, 26 anos, cresceu com os outros da Casa Blanca. Não era membro, mas dois cunhados seus eram, incluindo Franklin. O pastor precisava que Anner convencesse a Casa Blanca que o único caminho era a paz. Anner queria que o pastor entendesse o tamanho do desafio - a história da Casa Blanca.
Por mais de uma década, a Casa Blanca sobreviveu trabalhando com gangues maiores. Mas essas gangues aterrorizavam os moradores, e os membros acabaram expulsando-as de lá. “Eles se converteram em um grupo de combate às gangues", disse Anner. “A vida era boa. Acabaram os roubos, acabou a extorsão e a violência contra os moradores do bairro.” “E então", disse ele, “veio a polícia".
Durante o verão de 2017, a polícia prendeu meia dúzia de membros da Casa Blanca. Outros fugiram. O grupo foi dizimado, restando nas ruas apenas os integrantes de patente mais baixa. “Se alguma coisa não mudar, haverá um massacre antes do fim do ano", alertou o pastor Danny. “Fim do ano?” retrucou Anner. “Temo que será antes do fim da semana.”
‘Minha última cartada’
O pastor Danny dirigiu até o território da MS-13, na esperança de contar com a clemência de Samuel, líder da MS-13 na região. “Essa é minha última cartada", disse ele. Samuel parecia ter passado dos 30, cabelo curto e o comportamento calmo de quem está acostumado a estar no controle. Caminhou até nós e abraçou o velho. “Pastor Danny, como está?” perguntou. “Não estou muito bem, irmão", disse o pastor. “Tenho que pedir a você um favor pessoal.” Samuel ergueu as sobrancelhas e respondeu como um político. “Se eu puder ajudá-lo, pode contar comigo", disse ele.
“Sei que vocês estão pensando em tomar o território da Casa Blanca", disse o pastor Danny. “Mas estou lhe pedindo, estou implorando, por favor, não façam isso com violência. Não matem ninguém.” Todos sabem que a Casa Blanca é fraca, respondeu Samuel. Ele já tinha ordenado a um tenente - um homem apelidado de Monstro - que tomasse o bairro. “Vamos evitar a violência, se possível", disse ele. “Mas vai depender deles.”
‘Todos serão perdoados’
Alguns dias mais tarde, o pastor decidiu contar à Casa Blanca a respeito do seu plano de trégua. Ele reuniu todos na casa de Anner. “Eles disseram que todos serão perdoados desde que deixem eles entrarem pacificamente", disse o pastor, explicando os termos da MS-13.
O pastor sabia como conceber os fatos de acordo com as possibilidades mais otimistas. A MS-13 tinha dito apenas que não queria matar. Nunca foi feita nenhuma prometa explícita de perdão a todos. Ao fim do debate, Anner concordou em se reunir com Monstro. “É inevitável", disse Anner. “Quero dizer, pense nos números - são uns 50 mil deles contra oito de nós.”
Chegando de carro ao território da MS-13, Anner e o pastor chegaram a um edifício com entrada de latão. Logo abaixo, Monstro estava sentado em uma cadeira baixa, fumando maconha. “Não queremos problemas com a MS", disse Anner. Monstro, já muito chapado, balançou a cabeça e sussurrou “Não”. “Nosso objetivo não é matar ninguém", disse ele. “Se todos cooperarem, se aceitarem nossa entrada, não teremos que matar.”
‘Acho que consigo convencê-lo’
Os corpos apareceram em uma manhã de janeiro, mutilados, envoltos em sacos de lixo pretos e depositados na fronteira que divide o território da Casa Blanca e o da gangue da rua 18. O alerta falava por si: a rua 18 ficara sabendo da trégua com a MS-13 - e não tinha intenção de aceitá-la.
Algumas semanas mais tarde, Reinaldo desapareceu. O pastor ficou sabendo que a gangue da rua 18 o levou. O corpo nunca foi recuperado. A frágil paz negociada pelo pastor começou a ruir. A MS-13 nunca entrou no bairro, como Samuel e Monstro disseram que aconteceria. Embora a Mara tenha parado de atacar a Casa Blanca, como prometido, a gangue da rua 18 continuou o trabalho a partir do ponto em que as rivais o tinham interrompido.
Apesar de todos os seus esforços, tudo que o pastor Danny conseguiu foi trocar um inimigo por outro. E nem isso durou muito. No início desse ano, Samuel e Monstro foram promovidos. Depois que eles partiram, foi-se com eles a garantia de paz. O substituto de Monstro na MS-13, Puyudo, retomou os ataques contra a Casa Blanca - o pastor não soube dizer por quê.
Mas, algumas semanas depois, ele conseguiu se reunir com Puyudo. A desilusão do pastor Danny se dissipou. Ele fez a Puyudo uma versão abreviada do discurso que, a esta altura, já treinou meia dúzia de vezes. “Acho que consigo convencê-lo a parar o tiroteio", disse o pastor. “Logo vamos nos encontrar novamente.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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