Jogadoras de futebol francesas desafiam a proibição do uso do lenço em competições

A federação de futebol da França proíbe mulheres que usam hijab de competir, mesmo que a FIFA permita e um coletivo de jogadoras muçulmanas luta contra o que considera discriminação

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Por Constant Méheut
6 min de leitura

SARCELLES, França - Toda vez que Mama Diakité vai a um jogo de futebol, seu estômago dá um nó.

Isso aconteceu novamente em uma tarde de sábado recente em Sarcelles, um subúrbio ao norte de Paris. Seu time amador enfrentou o clube local, e Diakité, uma meio-campista muçulmana de 23 anos, temia que ela não pudesse jogar com seu hijab.

Founé Diawara, presidente do Les Hijabeuses, um grupo de mulheres com 80 membros, que jogam futebol usando o hijab.  Foto: Monique Jaques/The New York Times

Desta vez, o árbitro a deixou entrar. “Funcionou”, ela disse no final do jogo, encostada na cerca ao redor do campo, o rosto sorridente envolto em um lenço preto da Nike.

Mas Diakité tinha apenas passado despercebida.

Durante anos, a federação de futebol da França proibiu os jogadores que participam de competições de usar símbolos religiosos conspícuos, como hijabs, uma regra que ela alega estar de acordo com os rígidos valores seculares da organização. Embora a proibição seja pouco aplicada no nível amador, ela paira sobre as jogadoras muçulmanas há anos, destruindo suas esperanças de carreira profissional e afastando algumas do jogo.

Em uma França cada vez mais multicultural, onde o futebol feminino está crescendo, a proibição vem provocando reações. Na linha de frente da luta está Les Hijabeuses, um grupo de jovens jogadoras de futebol de diferentes times que usam hijab que se uniram para fazer campanha contra o que elas descrevem como uma regra discriminatória que exclui mulheres muçulmanas dos esportes.

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Seu ativismo tocou um nervo na França, revivendo debates acalorados sobre a integração dos muçulmanos em um país com uma relação conturbada com o Islã e destacando a luta das autoridades esportivas francesas para conciliar sua defesa de valores seculares estritos com pedidos crescentes por maior representação no campo.

“O que queremos é ser aceitas como somos, para implementar esses grandes slogans de diversidade, inclusão”, disse Founé Diawara, presidente do Les Hijabeuses, que tem 80 membros. “Nosso único desejo é jogar futebol.”

O coletivo Hijabeuses foi criado em 2020 com a ajuda de pesquisadores e organizadores comunitários na tentativa de resolver um paradoxo: embora as leis francesas e a Fifa, órgão que rege o futebol mundial, permitam que esportistas usem hijabs, a federação francesa de futebol proíbe, argumentando que isso romperia com o princípio da neutralidade religiosa em campo.

Os defensores da proibição dizem que os hijabs anunciam uma radicalização islâmica tomando conta dos esportes. Mas as histórias pessoais das integrantes do Hijabeuses enfatizam como o futebol tem sido sinônimo de emancipação - e como a proibição continua a parecer um retrocesso.

Diakité começou a jogar futebol aos 12 anos, inicialmente escondendo dos pais, que viam o futebol como um esporte de meninos.

“Eu queria ser jogadora de futebol profissional”, ela disse, chamando isso de “um sonho”.

Jean-Claude Njehoya, seu atual treinador, disse que “quando ela era mais jovem, tinha muitas habilidades” que poderiam tê-la impulsionado ao mais alto nível. Mas “a partir do momento” que ela entendeu que a proibição do hijab a afetaria, ele disse, “ela realmente não se esforçou mais”.

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Diakité disse que decidiu por conta própria usar o hijab em 2018 - e desistir de seu sonho. Ela agora joga em um clube da terceira divisão e planeja abrir uma autoescola.

“Sem arrependimentos”, ela disse. “Ou sou aceita como sou, ou não sou. E é isso.”

Karthoum Dembele, meio-campista de 19 anos que usa piercing no nariz, também disse que teve que confrontar sua mãe para poder jogar. Ela rapidamente se juntou a um programa intensivo de esportes no ensino fundamental e participou de testes em clubes. Mas foi só quando soube da proibição, há quatro anos, que ela percebeu que não poderia mais competir.

Membros de um grupo informal de mulheres que jogam futebol usando o hijab em um evento, que incluiu jogos curtos, organizado para protestar contra uma proibição da Federação Francesa de futebol na cobertura da cabeça muçulmana. Foto: Monique Jaques/The New York Times

“Consegui fazer minha mãe ceder e me disseram que a federação não me deixa jogar”, disse Dembele. “Eu disse a mim mesma: ‘Que piada!’ "

Outras integrantes do grupo relembraram episódios em que os árbitros as barraram em campo, levando algumas, sentindo-se humilhadas, a abandonar o futebol e a se voltar para esportes onde hijabs são permitidos ou tolerados, como handebol ou futsal.

Ao longo do ano passado, o Les Hijabeuses pressionou a federação francesa de futebol para derrubar a proibição. Elas enviaram cartas, se reuniram com autoridades e até fizeram um protesto na sede da federação - sem sucesso. A federação se recusou a comentar este artigo.

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Paradoxalmente, foram os oponentes mais ferrenhos do Les Hijabeuses que finalmente as colocaram no centro das atenções.

Em janeiro, um grupo de senadores conservadores tentou consagrar a proibição do hijab na federação de futebol, argumentando que os hijabs ameaçavam espalhar o islamismo radical nos clubes esportivos. A medida reflete um mal-estar persistente na França em relação ao véu muçulmano, que regularmente gera controvérsia. Em 2019, uma loja francesa desistiu de um plano de vender um hijab projetado para corredoras após uma enxurrada de críticas.

Energizado pelos esforços dos senadores, o Les Hijabeuses travou uma intensa campanha de lobby contra a emenda. Aproveitando ao máximo sua forte presença nas mídias sociais - o grupo tem quase 30.000 seguidores no Instagram - elas iniciaram uma petição que reuniu mais de 70.000 assinaturas; reuniu dezenas de celebridades do esporte para sua causa; e jogos organizados diante do prédio do Senado e com atletas profissionais.

Vikash Dhorasoo, ex-meio-campista da França que participou de um jogo, disse que a proibição o deixou perplexo.

“Eu simplesmente não entendo”, ele disse. “São os muçulmanos que são alvos aqui.”

Stéphane Piednoir, o senador por trás da emenda, negou a acusação de que a legislação visava especificamente os muçulmanos, dizendo que seu foco eram todos os sinais religiosos conspícuos. Mas ele reconheceu que a emenda foi motivada pelo uso do véu muçulmano, que ele chamou de “veículo de propaganda” para o Islã político e uma forma de “proselitismo visual”. (Piednoir também condenou a exibição das tatuagens católicas do astro do Paris Saint-Germain Neymar como “infelizes” e se perguntou se a proibição religiosa deveria se estender a elas.)

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A emenda acabou sendo rejeitada pela maioria do governo no parlamento, embora não sem atritos. A polícia de Paris proibiu um protesto organizado pelo Les Hijabeuses, e o ministro do Esporte francês, que disse que a lei permite que mulheres que usam hijab joguem, entrou em confronto com colegas do governo que se opõem ao lenço.

A luta das hijabeuses pode não ser popular na França, onde 6 em cada 10 pessoas apoiam a proibição de hijabs nas ruas, de acordo com uma pesquisa recente da empresa de pesquisas CSA. Marine Le Pen, a candidata presidencial de extrema direita derrotada nas eleições pelo atual presidente Emmanuel Macron em um segundo turno disse que, se fosse eleita, proibiria o véu muçulmano em espaços públicos.

Mas no campo de futebol, todos parecem concordar que hijabs devem ser permitidos.

“Ninguém se importa se elas jogam com ele”, disse Rana Kenar, 17, jogadora de Sarcelles que veio assistir seu time enfrentar o clube de Diakité em uma noite muito fria de fevereiro.

Pierre Samsonoff, ex-vice-chefe do ramo amador da federação de futebol, disse que a questão inevitavelmente voltará a surgir nos próximos anos, com o desenvolvimento do futebol feminino e a realização das Olimpíadas de 2024 em Paris, que contará com atletas de véus de países muçulmanos .

Samsonoff, que inicialmente defendeu a proibição do hijab, disse que desde então suavizou sua postura, reconhecendo que a política pode acabar afastando as jogadoras muçulmanas.

“A questão é se não estamos criando consequências piores ao decidir proibi-lo nos campos do que ao decidir permitir”, ele disse. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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