THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Quando meu pai voltava para New Rochelle de seu trabalho em Manhattan, ele geralmente estava cansado e rabugento. Mas em alguns dias, dentro de sua pasta surrada, aninhados entre blocos de papel amarelos, havia grandes sacos de doces, geralmente chocolate, para meus irmãos e para mim. Ele havia visitado uma Duane Reade durante sua hora de almoço e se enchido de doces para aliviar seu estresse, ou assim eu imaginava. Existem vícios piores.
Não existia Duane Reade em nosso bairro, então quando criança eu a conhecia não como uma rede de drogarias, mas como uma terra mágica de doces - e o lugar feliz do meu pai.
Anos mais tarde, quando me mudei para Nova York para fazer faculdade, senti a alegria de percorrer os corredores da Duane Reade: pilhas de guloseimas de Páscoa como um sinal precoce da primavera, escovas de dentes atrás do acrílico como um sinal de que havia ladrões de lojas, cores de esmaltes que olhei, mas nunca comprei, brincos baratos que provocavam elogios aos quais respondia com orgulho: “São da Duane Reade!”
Ainda mais tarde, soube como o nome da loja veio de sua primeira localização, entre as ruas Duane e Reade, no centro de Manhattan.
A loja vende todos os itens mundanos da vida, que no final vão para o lixo, são reciclados ou jogados na privada. Itens que não são nada, mas também são tudo: rolos adesivos, desodorante, cartões comemorativos, revistas, material escolar, vitaminas.
Aquela vez em que eu estava com dor de cabeça, ou dor de garganta, ou aquela outra vez em que as alergias do meu marido irromperam depois que andamos de táxi pelo Central Park, quando as cerejeiras rosadas estavam floridas, ele com a cabeça para fora da janela como um golden retriever cheio de alegria, mas sendo uma pessoa. Minha pessoa.
Meu marido e eu nos separamos em 2016. Não tínhamos filhos, não possuíamos propriedades ou muito dinheiro. Nosso casamento foi glorioso até que não foi mais. No final, não estávamos nem compartilhando refeições. Mas uma coisa que permaneceu é nossa conta compartilhada de recompensas Duane Reade, do tipo que oferece descontos e pontos. É uma dessas coisas tão pequenas, tão inconsequentes, que nunca penso no fato de ainda compartilhá-la até segundos antes de eu pagar. Então, de repente, os recibos são enviados para mim.
Ele agora faz compras na Duane Reade perto de onde mora, não em nossa Duane Reade, porque não existe mais nada “nosso” (exceto nosso cartão de recompensas compartilhado). Vejo em seus recibos discriminados que ele comprou três rolos de papel para embrulhar presentes de Natal (não para mim), produtos para clarear os dentes (para sorrir para outra pessoa), creme para domar o cabelo (para seus cachos rebeldes), e que pagou cinco centavos pela sacola de compras (porque evidentemente ele esqueceu a dele).
Meu terapeuta diria que eu deveria fechar a conta, mas parei de vê-lo há alguns anos. Meu ex-marido e eu ainda mantemos contato, e quando o lembrei de nossa conta compartilhada, ele disse que sabe que eu amo a Duane Reade e me deu permissão para usar seus pontos (e até me deu permissão para escrever sobre tudo isso).
É a menor conexão transacional que deve existir com alguém, mas também é tão íntima. Talvez seja nosso último fio de controle ou codependência ou manipulação. Mas em um nível descomplicado, é um tipo de generosidade que vive para ver outro dia iluminado por luzes fluorescentes.
Recentemente, recebi um recibo dele da Duane Reade que tinha tintura de cabelo feminino. Castanho escuro. Minha cor. Ele é um loiro opaco. O que ele estava fazendo? Foi para sua nova namorada? Ou ele estava tingindo o próprio cabelo?
Eu ruminei sobre isso por tanto tempo que se tornou algo doentio. Finalmente, perguntei a ele.
“Ah, foi para mim”, ele disse. Uma coisa de cosplay. O tom exato que ele precisava para sua fantasia ficar boa. Ele sempre foi um artista no coração. Profissionalmente, projeta e constrói cenários para varejo, moda e cinema e é apaixonado pelo seu trabalho. Eu adorava isso nele, mas também é parte do que acabou conosco.
E agora minha Duane Reade local está chegando ao fim também, fechando permanentemente. A penúltima vez que estive lá há alguns meses, me preparei antes de entrar, mas não estava tão vazia quanto eu esperava. E nenhum dos doces estava em liquidação ainda. Os cartões do Dia dos Namorados estavam transbordando, como sangue oxigenado com penas e lantejoulas ainda pulsando nas veias.
Enquanto eu esperava para pagar, dois metros atrás da pessoa à minha frente, um homem apareceu com os braços cheios de esfregões e vassouras. Agachado e grisalho, ele foi para fora resmungando - e sem pagar. Ele nem se apressou.
As pessoas que trabalhavam lá não fizeram nada. Suponho que lhes foi dito para não se colocarem em risco nestas situações. Eu também não fiz nada.
Fiquei pensando que tipo de grande projeto de limpeza ele estaria fazendo até que a mulher que trabalhava lá disse em voz alta, em um tom exausto e resignado: “Ele vai vendê-los”.
Estou triste por ver a loja fechar. Meu vizinho otimista e nada sentimental já está esperando que abra um Trader Joe’s. Viver em Nova York nos lembra constantemente que, para o bem ou para o mal, a mudança está sempre acontecendo. E essa rotatividade rápida nos força a avançar - para um futuro imaginário que é supostamente melhor do que o nosso presente.
Melhor não olhar para trás. Melhor não ficar pensando nos milhões de corações que bateram e se partiram neste mesmo pedaço de calçada. Certo?
Como Gloria Steinem disse uma vez em uma palestra que assisti há quase 17 anos em resposta a alguém que lamentava a perda da vitalidade cultural e política dos anos 1960: “A nostalgia pode ser desempoderadora”.
Esta declaração me pegou. Com uma sentimentalidade profunda, criada por pais cujos únicos dias bons eram os velhos dias, nunca pensei que glorificar o passado pode ser algo potencialmente problemático. Mas é claro que pode.
Então, em 2014, três pesquisadores ganharam o Prêmio Nobel por sua descoberta de “células de lugar” e “células de grade”, neurônios no hipocampo do cérebro e no córtex entorrinal que ajudam a criar um mapa espacial do mundo e gerar um senso de direção. Toda vez que um rato entrava em um canto do labirinto que conhecia bem, o mesmo grupo de neurônios era ativado e começava a disparar sinais elétricos. Eles atuam como uma espécie de sistema GPS e ajudam a organizar memórias sobre locais específicos.
Os humanos também têm células de lugar e células de grade. O que me faz pensar o seguinte, quando a Duane Reade não estiver mais na minha esquina, minhas “células de lugar” para ela permanecerão latentes para sempre? Talvez minhas células de lugar traiam minha Gloria Steinem interior, me puxando de volta ao passado por alguns preciosos milissegundos. Mas provavelmente só podemos dar crédito a essas células por entregar uma mensagem neutra de “Você está aqui”, enquanto o agridoce “Eu me lembro quando - " vem de algum outro lugar.
Meu ex-marido é diferente de meu pai em muitos aspectos. Ele é uma pessoa alegre, que gosta de rir e calorosa. Mas meu pai sempre conseguia chegar em casa a tempo, e nesse aspecto meu ex também era diferente: ele quase nunca chegava em casa a tempo e, em muitas noites, ele nem sequer voltava para casa.
Ele teve uma infância complicada e era especialmente próximo do irmão, com quem trabalha. Amigos sugeriram que ele estava me traindo. Mas eu sabia que ele estava preso em uma agitação noturna de ansiedade sobre clientes, painéis de madeira compensada de média densidade e as necessidades de seu irmão.
E de qualquer forma, agora eu sei que não importava muito por que ele não voltava para casa, mas apenas que ele não voltava.
Nosso cotidiano se desfez. E todos os itens de consumo que marcam a passagem dos dias normais deixaram de ser compartilhados. Ele não sabia o que tínhamos na geladeira, nem sabia o status de nosso papel higiênico, cotonetes ou ralinhos para nossas pias. Essas necessidades diárias falharam em ancorá-lo em nosso lar; era mais como se ele estivesse apenas de passagem.
Quando voltei à minha Duane Reade pela última vez, a pessoa que me atendeu me disse que eu tinha cinco dólares em pontos e me perguntou se eu queria usá-los.
“Não”, eu disse. Paguei e saí para a cidade em que nevava com duas barras de sabão, algumas toalhas de papel e um nó na garganta para o qual não há remédio.
Eu sei que até fechar nossa conta conjunta de recompensas, continuarei recebendo os recibos do meu ex-marido, como cartas de amor de um aterro. E talvez um grupo específico de neurônios para a vida que uma vez compartilhamos dispare pelo resto dos meus dias. Mas agora que minha Duane Reade local fechou, não preciso mais dos pontos dele. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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