THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em uma noite fria de março, um armazém com piso de cimento no subúrbio parisiense de Fontenay-sous-Bois foi palco de um desfile de moda de alta-costura diferente. Uma modelo em uma jaqueta de mangas curtas com corpete em chevron bronze, kilt de chiffon de seda azul-marinho e uma franja de corrente bronze balançando desfilou ao som da batida de um DJ.

Outra modelo usava um vestido corset tangerina feito de tiras de tecido em espiral que caíam como uma cachoeira em direção ao chão. Uma terceira usava um vestido tomara que caia de seda branca, franzido na cintura, bordado com flores azuis e rosa.
Ao contrário da alta-costura tradicional, apresentada nas passarelas de Paris em junho, essas roupas não foram costuradas por artesãos experientes ou feitas de materiais novos e preciosos. A jaqueta bronze foi feita a partir de um par de calças masculinas Etro de segunda mão e bordada com correntes finas de uma empresa que faliu.
O chiffon veio de um estoque do ateliê de uma costureira aposentada. O vestido tangerina foi feito com gravatas de uniformes antigos dos Aeroportos de Paris. O vestido floral branco era um xale do século XIX.
E todos foram costurados por uma mão de obra que, não muito tempo atrás, teria dificuldade em encontrar empregos na indústria da moda de luxo.
O evento apresentou o trabalho da Renaissance, uma organização sem fins lucrativos francesa que produz peças recicladas feitas no estilo da alta-costura e oferece oportunidades de treinamento profissional para pessoas de baixa renda e imigrantes. Ela foi fundada em 2018 por Philippe Guilet, ex-assistente de design de Karl Lagerfeld, Thierry Mugler e Jean Paul Gaultier, que queriam provar que a alta-costura pode ser mais responsável.

A organização ensina algumas das técnicas mais sofisticadas em design de moda e se baseia em um movimento de organizações sem fins lucrativos para formar trabalhadores e ajudar a colocá-los em empregos no ramo da moda. Como grande parte da alta-costura tradicional, muitas das peças da Renaissance são únicas e cuidadosamente feitas à mão.
“Existem outros estilistas que trabalham com upcycling, que é uma solução para o desperdício produzido pela moda”, disse Pascal Morand, presidente executivo da Fédération de la Haute Couture et de la Mode, órgão regulador da indústria da moda francesa, e membro do conselho da Renaissance. Existem organizações, observou ele, que ensinam o ofício da costura. “Mas a Renaissance combina esses dois aspectos em um nível muito alto”, disse ele.
Guilet, que também trabalhou para Chloé, J. Mendel e Donna Karan, há muito se interessava pelo upcycling. (Para a coleção de alta-costura da primavera de 2002 de Gaultier, ele fez um vestido de festa com gravatas masculinas.) Ele transformou uma calça masculina em um colete e o mostrou a Morand, um amigo de longa data. Morand achou a peça linda e perguntou a Guilet como ele poderia transformá-la em algo mais.
Guilet decidiu que queria “fazer algo que fosse eco-responsável e que também transmitisse esse belo savoir-faire”, disse ele, ou seja um conhecimento consumado do ofício.
Ele levantou fundos do grupo de luxo Kering e recebeu subsídios do governo francês. Em setembro de 2019, ele abriu um ateliê na Cité du Vercors, um conjunto habitacional público em Villejuif, um subúrbio de baixa renda ao sul de Paris. O espaço foi oferecido pela Action Logement, uma associação de desenvolvimento urbano que ajuda a financiar e administrar habitações sociais. Lá, Guilet montou máquinas de costura, mesas de trabalho e manequins Stockman e entrevistou candidatos enviados por uma agência governamental de empregos.

Ele selecionou 15 pessoas, incluindo imigrantes de Gana, Marrocos e Tunísia, além de refugiados da Ucrânia e do Afeganistão. Como todos os alunos e professores da Renaissance, eles recebiam salários e benefícios trabalhistas franceses. Durante sete meses, Guilet ensinou à turma técnicas de alta-costura, como o “Méthode Grès”, um estilo fluido de drapeado inventado pela costureira Madame Grès.
“Alta-costura é sobre a inteligência da mão”, disse Guilet. “Se você entende de alta-costura, você pode fazer qualquer coisa. Você é um mestre”.
Através do boca a boca, a Renaissance recebeu doações de roupas vintage bem feitas, que o ateliê transformou em silhuetas modernas enraizadas nos clássicos franceses. Guilet realizou o primeiro desfile de moda da Renaissance em março de 2020, no Institut du Monde Arabe.
A segunda coleção, produzida pela segunda turma de 20 alunos, foi apresentada na casa de leilões Drouot, em Paris, em julho de 2021. Em seguida, alguns dos looks dos dois primeiros desfiles foram leiloados; vários vestidos foram vendidos por mais de $ 7.000 cada. Algumas dessas peças foram expostas durante a semana da alta-costura em janeiro passado.
Embora existam máquinas de costura no ateliê da Renaissance, grande parte do trabalho é feito à mão, assim como na alta-costura. “Não se trata de cortar vestidos velhos e costurá-los para fazer algo novo, mas de aprender a técnica da alta-costura”, disse Guilet. “Os alunos desfazem as costuras e, uma vez desfeitas, entendem o que têm e descobrem a melhor forma de aproveitá-las com o objetivo de desperdício zero.”
Durante o curso, cada aluno produz dois ou três looks que ficam disponíveis para aluguel ou compra. Três looks foram parar na série da Netflix “Emily em Paris”, incluindo um terno de alfaiataria feito com um quimono de judô oferecido pela ex-campeã da França; um vestido reformado a partir de um vestido de Sonia Rykiel; e outro vestido feito a partir de calças masculinas Yamamoto e um vestido Rykiel.

O programa de treinamento profissional da organização também está prosperando. Quase metade dos 35 graduados da Renaissance conseguiram empregos em casas de moda de luxo, incluindo Saint Laurent, Chloé, Alaïa e Dior, e vários abriram seus próprios ateliês, para produzir vestidos de noiva ou fazer alterações e reparos.
Robby e Ted Kipre, irmãos gêmeos de 25 anos que cresceram na Cité du Vercors e estavam na primeira turma de aprendizes, começaram uma marca de streetwear chamada Kipre Couture. Eles realizaram um desfile durante a semana de moda masculina de Paris em janeiro e mantiveram quatro lojas pop-up em Paris.
Durante a recepção pós-desfile no armazém da Fontenay em março, Ted Kipre disse que a moda “sempre foi nossa paixão - sempre quisemos fazer isso, mas não sabíamos por onde começar”.

Ele estava vestido com um dos looks da marca: calça preta de crepe, jaqueta de couro e boné de beisebol Kipre Couture - 100% upcycled, segundo ele.
A Renaissance está agora desenvolvendo uma coleção cápsula produzida pela atual turma de 40, selecionada entre mais de 1.300 candidatos. A coleção é feita com uniformes doados pela RATP, agência de transporte de Paris que opera o metrô e os ônibus. As roupas serão vendidas no site de comércio eletrônico da Renaissance, programado para entrar no ar em setembro.
“Eventualmente, gostaríamos de ter uma butique”, disse Guilet. “Assim, qualquer um pode trazer suas lindas roupas velhas e transformá-las em algo novo.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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