Em Porto Rico e na República Dominicana, as marquesinas são centros de convocação, onde a família e os amigos se reúnem para beber, dançar e conversar. A intimidade e o convívio são cultivados nessas garagens e pátios ao ar livre, um espaço comum nas casas de classe média. É ali que você é educado. É onde aprende a movimentar as curvas do seu corpo quando dança reggaeton pela primeira vez e começa a entender a linguagem que a música oferece: o êxtase e a incerteza da juventude, a autodescoberta sexual e a liberdade de movimento.
Mesmo nas festas nas marquesinas do início dos anos 2000, o reggaeton carregava certos mitos. Se você cresceu no auge da ascensão comercial do gênero como eu, aprendeu cedo certas ideias sobre o gênero. A noção, por exemplo, de que é apenas música vulgar de festa. Ou que foi inventado apenas em Porto Rico. Ou que é um bom exemplo de cruzamento cultural global, implodindo barreiras linguísticas e culturais e levando os latinos para o mainstream.

Mas essas são suposições enganosas e simplistas. Elas mascaram a complicada dinâmica de poder embutida na música popular, especialmente se um gênero emerge de um local de luta. Elas perpetuam ideias redutivas sobre o reggaeton, obscurecendo as condições prismáticas de seu passado e presente.
Como um movimento moldado pelo deslocamento e migração dos sons diaspóricos negros e de seu povo, é difícil definir o reggaeton com firmeza. Mas há algumas coordenadas essenciais: a circulação e metamorfose do dancehall jamaicano, o reggae panamenho em espanhol, o hip-hop e o underground porto-riquenho.
Muitos localizam as origens do reggaeton no Panamá da década de 1980, onde os filhos dos trabalhadores do canal das Índias Ocidentais tentaram traduzir o dancehall jamaicano, a soca de Trinidad e outros gêneros afro-antilhanos para o espanhol. O dancehall de Nova York e o reggae panamenho em espanhol viajaram para Porto Rico, onde o gênero evoluiu ao lado do hip-hop em espanhol como um movimento chamado underground. O reggaeton sempre teve multiplicidade lírica: foi um gênero de festas, mas também falava da vida na rua: drogas, racismo, crime, romance - histórias de prazer e protesto.
"Loud", um novo podcast produzido pelo Spotify em parceria com o Futuro Studios, conta a evolução do reggaeton de frente e em um momento crítico, após um longo período de abandono pela mídia anglófona. Hoje, sua influência global é muito grande para ser ignorada: Há o sucesso de artistas como Bad Bunny, o artista mais tocado no Spotify em 2020; o outrora inescapável "Despacito" de Luis Fonsi e Daddy Yankee, um sucesso aguado de popetón com uma participação de Justin Bieber que ficou por muito tempo como o Nº 1 na história do Hot 100 da Billboard; bem como relatórios intermináveis que detalham a ascensão do gênero nas plataformas de streaming.
O minucioso "Loud" está profundamente ciente das texturas do reggaeton. Ao longo de 10 episódios, ele traça diferentes capítulos do desenvolvimento do gênero: suas raízes panamenhas, sua aquisição pela indústria no início e meados dos anos 2000 e seu renascimento em Medellín, na Colômbia. O podcast bilíngue traz nuances e respeito pelos artistas tradicionais; sua narradora, Ivy Queen, é da realeza do reggaeton, uma das poucas mulheres na indústria que obteve reconhecimento comercial.
No primeiro episódio, o projeto destaca firmemente a origem afro-caribenha do gênero e seus começos desafiadores: “Para algumas pessoas, reggaeton é apenas música de festa. Mas a verdadeira história do reggaeton é sobre “la resistencia”. “Resistência”, afirma Ivy Queen com uma clareza penetrante. “Sobre como as crianças que eram jovens ou pobres, negras ou de pele escura - que foram discriminadas em todos os sentidos - como nos recusamos a ficar quietos”. Conforme o episódio chega ao fim, ela enfatiza o argumento mais amplo do programa, afirmando que o reggaeton é um "som negro com raízes no mundo anglófono".
Esta é uma posição sobre os criadores, o ethos e a identidade da música que se mantém ao longo dos episódios. Rebelião é o que não falta em "Loud". Este é um projeto que mergulha os ouvintes na dissidência.
“Loud” tem os direitos sobre a maior parte das músicas que analisa e sabe que detém uma mina de ouro. Em um capítulo, o programa mostra como os inovadores produtores Luny Tunes infundiram reggaeton com melodia e cordas através das lentes do virtuosístico "Te He Querido Te He Llorado" de Ivy Queen. Ouvindo o episódio, quando a guitarra bachata e a bateria dembow da música se chocavam sob o lamento gutural de Ivy, fiquei com vontade de me levantar e cantarolar seu réquiem de ressentimento e desilusão para ninguém em especial.
Mas "Loud" enfrenta as partes difíceis da história dessa música também: a homofobia embutida no “Dem Bow” de Shabba Ranks, que serve como a base percussiva do gênero; a difamação da música, que levou a campanhas de censura do governo em Porto Rico; e o preconceito racista e classista da mídia latina tradicional, que não registrou atos de reggaeton no começo de sua ascensão no mainstream. Alguns momentos que rodeiam a história do gênero se beneficiariam de uma reflexão mais aprofundada; uma discussão da ideologia racial da mestiçagem, por exemplo, é muito breve para tratar o assunto com a devida profundidade.
Claro, é impossível esboçar um retrato completo de qualquer gênero de música popular ao longo de um podcast. E o reggaeton é um gênero de transformação, um movimento que recusou a estagnação e passou por constantes reinvenções ao longo de sua existência. "Loud" nos pede para reconsiderar as histórias coletivas que ouvimos sobre a música nas festas nas marquesinas que moldaram parte de nosso entendimento inicial de seus contornos.
Ele se afasta do reggaeton canônico, incitando-nos a olhar melhor para a profundidade e a insurgência que o gênero sempre prometeu. Ele nos obriga a ouvir reggaeton com complexidade - tanta complexidade quanto a música e sua história contêm. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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