Regra de um diretor iraniano: ‘Sempre se concentre nas pessoas comuns’

Asghar Farhadi, que ganhou dois Oscars, diz que histórias sobre ricos e famosos “não fazem parte do meu banco emocional”.

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Por Farnaz Fassihi
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Asghar Farhadi fez seu primeiro filme aos 13 anos, com uma câmera de 8 mm, sobre dois meninos que concordam em dividir um rádio abandonado em dias alternados, mas que depois o descartam porque nenhum deles pode ouvir seu programa noturno favorito.

Asghar Farhadi diz que histórias sobre ricos e famosos 'não fazem parte do meu banco emocional'. Foto: ROZETTE RAGO

O filme - que lhe rendeu uma bicicleta nova como prêmio - é uma história de crianças enfrentando desafios triviais. Mas, como todas as histórias que Farhadi roteirizou e dirigiu com grande aclamação como um dos cineastas mais proeminentes do Irã, empregou o mundano para transmitir o profundo.

“É muito valioso para mim sempre focar nas pessoas comuns”, disse Farhadi, que aos 49 anos é duas vezes vencedor do Oscar, em uma entrevista de Los Angeles, que ele estava visitando. O cineasta vive em Teerã, Irã. “Acho que meu trabalho nunca será sobre pessoas especiais ou famosas porque elas não fazem parte do meu banco emocional.”

Para os personagens desse banco emocional, extraídos em grande parte de sua própria infância, as circunstâncias podem transformar um objeto valioso em um aborrecimento inútil. As pessoas lutam com decisões meticulosas e compromissos intrincados, esperando um desfecho, mas enfrentando um resultado totalmente diferente. Os indivíduos são matizados e não facilmente categorizados como salvadores ou vilões.

Seu filme mais recente, Um Herói, que ganhou o segundo prêmio de maior prestígio em Cannes, integra todos esses subtemas. Seus personagens comuns são envoltos em caos, suspense e emoção.

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Afinal, Farhadi é filho de uma revolução que derrubou a monarquia, instituiu uma teocracia islâmica e transformou os Estados Unidos em um inimigo político. Quando ele tinha 10 anos, o Irã estava em guerra com o Iraque e as crianças faziam treinos para se protegerem na escola primária.

“Nossa infância foi em uma época em que vimos uma bomba explodindo em nosso bairro”, ele disse. “Isso é algo que não desaparecerá da nossa memória e nos influenciará para sempre.”

Se Farhadi fosse nomear seu herói pessoal, seria seu avô com quem ele passou a maior parte de sua infância. Ele não era altamente escolarizado, mas era um talentoso narrador que reunia a família para contar histórias otimistas.

Farhadi, o público cativo de seu avô, queria ser como ele. Então, ele fez da contação de histórias sua profissão.

O protagonista de Um Herói é um homem preso por dívidas financeiras e lutando com um dilema moral que poderia garantir sua libertação. A cobertura da imprensa e o burburinho das mídias sociais o elevam a um herói da noite para o dia por uma boa ação. Mas as mesmas forças rapidamente o derrubam quando surgem reviravoltas e meias verdades, lançando dúvidas sobre sua motivação.

Farhadi disse que o filme examina por que uma sociedade precisa fazer de alguém um herói. Ele queria mostrar as falhas de idolatrar uma pessoa e esperar que os outros o seguissem. O tempo e a percepção acabarão por revelar os lados não tão perfeitos de um herói, e a imagem se despedaçará, ele disse.

Se seus filmes pretendem ser comentários sociais e políticos, Um Herói apresenta um ousado desmonte da tendência entre os iranianos de reverenciar figuras religiosas e políticas como divinas. Farhadi disse que esse resultado é inevitável “quando você está tentando contar uma história o mais próxima possível da vida real”.

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'Não quero dizer que não estou feliz com meu caminho, mas as pessoas que obtêm sucesso na vida fazem outros sacrifícios', disse Farhadi. Foto: ROZETTE RAGO

Os iranianos ainda dão a seus filhos nomes de antigos heróis literários. O islamismo xiita, a religião dominante do Irã, está ancorado na emulação do clero religioso. A estrutura política do país, dos xás ao atual líder supremo, centrou-se no culto à personalidade.

“Em uma sociedade saturada de slogans, isso pode acontecer”, disse Farhadi. “Queremos criar ídolos constantemente e, dizer, sejam como eles. O núcleo disso está errado.” Ele acrescentou: “Quando temos heróis na sociedade, estamos basicamente fugindo de nossas responsabilidades”.

Farhadi, que mora em Teerã com sua esposa e filha mais nova, disse que se sente em seu melhor momento criativo quando trabalha em sua terra natal. Mas ele não é indiferente ao sofrimento que testemunha. Ele disse que a raiva que cresce entre os iranianos é palpável, e ninguém está tentando lidar com isso.

Apoiadores do governo o acusam de fazer filmes que mostram um lado negativo do Irã. Outros criticam o que consideram retratos excessivamente luminosos.

“Para tudo – não apenas para os artistas – para todos os aspectos da vida iraniana, existe essa polarização. Não é muito transparente. Você diz algo e eles interpretam de outra maneira”, disse Farhadi. “A questão é levantada, de que lado você está?”

Farhadi prefere fazer declarações por meio de filmes, ele disse, porque a arte é mais duradoura e impactante do que comentários passageiros. Ocasionalmente, no entanto, ele simplesmente não consegue segurar a língua.

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Em novembro, Farhadi criticou o governo em um longo post no Instagram que declarava: “Deixe-me dizer claramente, eu desprezo você”.

Ele condenava facções que tentavam defini-lo como um artista afiliado ao governo e disse que se essa era a percepção, o Irã deveria retirar Um Herói como sua entrada oficial para o Oscar. O Irã não fez isso. (O filme entrou na lista inicial do Oscar, mas não foi indicado.)

Em 2017, Farhadi se posicionou contra a política de proibição de viagens do ex-presidente Donald Trump, que afetou os iranianos, boicotando a cerimônia da Academia, onde ganhou seu segundo Oscar.

Farhadi nasceu em 1972 em Homayoun Shahr, uma pequena cidade fora de Isfahan, em uma família de classe média que possuía uma mercearia. Ele passava os verões trabalhando em uma gráfica local emoldurando e recortando fotos dos rolos das câmeras dos clientes. Quando era adolescente, encontrou um livro sobre fazer filmes e escreveu seu primeiro roteiro, sobre o rádio. Ele fez o curta-metragem com o apoio de um centro cultural patrocinado pelo governo local.

Ele se mudou para Teerã para cursar a universidade, formando-se em teatro e obtendo um mestrado em cenografia. Farhadi escreveu roteiros para televisão e rádio estatais antes de escrever e dirigir seus próprios filmes.

Em 2009, seu filme À Procura de Elly ganhou o prêmio de melhor diretor no festival de cinema de Berlim e melhor filme no festival de Tribeca. No mundo do cinema global, ele chamou a atenção.

Ele ganhou dois Oscars na categoria de melhor filme estrangeiro por A Separação em 2012 e O Apartamento em 2018. Farhadi agora pertence a um clube de elite com apenas alguns diretores icônicos – Federico Fellini, Ingmar Bergman – que ganharam vários Oscars na categoria de filme estrangeiro.

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Apesar de todas as honras, Farhadi relembra a alegria de ver seu primeiro prêmio, uma bela bicicleta colocada no palco. Ele havia comparecido à cerimônia de premiação sozinho em Isfahan e se preocupava em como voltaria de bicicleta para casa. Era noite e a chuva caía. Farhadi disse que pedalou por duas horas.

Quando seu pai abriu a porta e o viu encharcado e exausto, mas exibindo com orgulho seu prêmio, não teve coragem de repreendê-lo. Ele perguntou gentilmente: “Valeu a pena?”

Essa pergunta tem preocupado Farhadi enquanto ele reflete sobre sua carreira.

“Não quero dizer que não estou feliz com meu caminho, mas as pessoas que obtêm sucesso na vida fazem outros sacrifícios”, disse Farhadi. “E às vezes você se pergunta: ‘Valeu a pena?’”

Se ele pudesse perguntar a seu eu de 13 anos agora, com a visão de um diretor célebre, disse Farhadi, ele responderia que “você não precisava trabalhar tanto; você não tinha que começar tão cedo.”

O cinema, ele disse, “não é tudo o que existe na vida. Percebi isso um pouco tarde.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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