Paulistanos estão fazendo fila para ‘vender os olhos’ por moedas digitais; veja vídeo

Empresa responsável pelo escaneamento nega armazenamento dos dados sensíveis e diz que finalidade é ‘reconhecer a humanidade’ dos usuários,’ de maneira anônima, na era da IA

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Atualização:

“Vendi meu olho”, brinca Ágatha Cavendish, 21 anos, estudante, sobre ter feito seu registro no World App - a nova rede digital cocriada por Sam Altman, CEO da OpenAI, responsável pelo ChatGPT. O aplicativo demanda reconhecimento facial e escaneamento da íris, um dado biométrico sensível, para realizar o cadastro pessoal do usuário, chamado World ID. Em troca, oferece algumas dezenas de “moedas digitais” que podem ser vendidas dentro do próprio aplicativo por “dinheiro de verdade”. Na prática, a pessoa faz uma imagem de alta resolução da íris e recebe tokens de criptoativos, como o bitcoin, que podem ser trocados por reais - dependendo da cotação dessa moeda é possível receber entre R$ 300 e R$ 700.

O que parece um episódio de série de ficção científica começou a se popularizar em São Paulo e chamou atenção das autoridades. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) instaurou em novembro, mês em que o aplicativo começou a funcionar no Brasil, um processo de fiscalização para “investigar o tratamento de dados biométricos de usuários no contexto do projeto World ID”. O processo está, neste momento, em fase de análise da documentação enviada ao governo pela Tools for Humanity, empresa responsável pelo escaneamento e uma das que já oferece soluções dentro da plataforma World. Não há prazo para conclusão.

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Enquanto o parecer da ANPD não sai, o World App vem ganhado muitos adeptos em São Paulo, primeira cidade no Brasil a aderir ao serviço. Já são mais de 400 mil pessoas registradas e 48 pontos de captação das imagens dos olhos. Mais de um milhão de pessoas já baixaram o aplicativo no celular - e milhões de pessoas assistiram aos vídeos no TikTok de pessoas que já participaram do projeto.

O sistema foi criado pela Tools for Humanity, startup fundada em 2019 que já levantou US$ 194 milhões em três rodadas de investimento - a mais recente delas, de abril de 2023, foi no valor de US$ 115 milhões. Entre eles estão a16z, Blockchain Capital e Bain Capital. O discurso da companhia é de que é preciso encontrar uma forma de distinguir humanos de máquinas na internet, ainda mais com o crescimento de inteligência artificial (IA). O sistema de prova de humanidade como poderia ser alternativa a tecnologias de segurança como CAPTCHA, aquele teste fotográfico usado para distinguir humanos de bots em sites pela internet. A tecnologia poderia ser embutida em diversos serviços, como e-mails, plataformas de vídeo chamadas, perfis em jogos e ferramentas para combate de spam.

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Usuários recebem criptoativos em troca do cadastramento de suas íris e rosto na plataforma da World, uma nova rede digital. Foto: Alex Silva/Estadão

Segundo a companhia, a melhor forma de atestar que um humano “existe“ é por meio da íris. A partir da imagem, o sistema gera um código que não pode ser repetido por outro ser humano. “O código daquele indivíduo é gerado e encaminhado para ele, no seu próprio celular. Ele passa a ter a auto custódia dos seus dados”, diz Rodrigo Tozzi, chefe de operações da Tools of Humanity no Brasil. Pelo próprio aplicativo, o usuário pode apagar seu World ID e, com isso, seus dados. Segundo a empresa, todo o processo é anônimo. Ou seja, não há atrelamento de dados.

Ele afirma também que para acessar essas informações no celular, é preciso fazer também uma verificação facial e que as imagens da íris e do rosto da pessoa são automaticamente apagadas da orb (nome dado à câmera de alta resolução que capta as imagens dos olhos - e que parece um artefato alienígena) após a verificação.

Com tudo isso, Tozzi alega que é “praticamente impossível” um vazamento de dados, já que o escaneamento gera um código disponível apenas para o usuário, em sua conta no aplicativo, que é criptografado e que demanda verificação facial para ser acessado.

A ANPD afirma que “a Tools for Humanity encaminhou os documentos e as informações requeridas”. Foram exigidas informações como contexto em que ocorrem as atividades de tratamento de dados pessoais, exercício de direitos pelos titulares dos dados e medidas de segurança da informação e de proteção de dados pessoais existentes.

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Se constatado tratamento irregular de dados sensíveis, podem ser adotadas medidas preventivas por parte da ANPD e/ou um processo administrativo contra a empresa.

Motivação financeira leva usuários a se inscreverem mesmo com pouca informação sobre a rede

Ainda que soe como um projeto futurista mirando a convivência de homens e máquinas, o que tem motivado os brasileiros a aderir ao sistema são questões bem mais mundanas: dinheiro fácil e rápido. O Estadão esteve em alguns desses postos de verificação da biometria. Na zona sul da cidade na sexta-feira, 17, encontramos filas de pessoas que não entendiam muito bem o que é o aplicativo e qual o objetivo de terem seu rosto e íris escaneados, mas que se cadastravam mesmo assim pelo potencial retorno financeiro - o mesmo cenário ocorria na zona norte na quinta, 23. “Mesmo com certa desconfiança, o dinheiro ‘fácil’ parecia bom no momento”, disse Ágatha Cavendish.

“Você chega lá e eles liberam um código no seu celular. Colocamos os olhos na câmera e pronto”, contou Joice Gonçalves, 41 anos, atendente de loja. “A gente recebe na nossa conta do aplicativo esses tokens e vende. Recebemos o valor na nossa conta do banco. O preço varia, tem que ficar acompanhando. Eu já tirei uns R$ 300 e ainda tenho mais para vender”, disse Julio Marco Silva, 33 anos, auxiliar de serviços gerais.

Mais de 400 mil pessoas já cadastraram seu rosto e íris no aplicativo da World. Objetivo da rede é promover espaço digital 100% para humanos, sem uso de robôs de inteligência artificial. Foto: Alex Silva/Estadão

Durante a produção da reportagem, para cada novo registro World ID, estavam sendo oferecidos 48 tokens, chamados “Worldcoins”. Isso equivalia na quinta, 23, a R$ 611. O valor do criptoativo é de alta volatilidade, valorizando ou desvalorizando-se conforme a oferta e a demanda, assim como no mercado de ações e outros criptoativos.

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Atualmente, as pessoas recebem 20 tokens 48 horas após o cadastro e mais cerca de dois tokens por mês durante um período de até um ano, completando o total prometido na data de cadastro. A oferta de tokens por cadastro diminui conforme o total de usuários aumenta na plataforma e não há prazo para que a inciativa seja finalizada.

De acordo com a Tools for Humanity, a oferta dos tokens pela criação do cadastro tem como objetivo atrair usuários para a rede recém criada e, com isso, aumentar o número total de usuários e a sua relevância no mercado digital. A empresa nega que esteja “comprando dados pessoais” e enfatiza que o objetivo da World é criar um espaço digital livre de robôs movidos a inteligência artificial e com “finanças digitais para todos”.

Atrair massa crítica para o ecossistema World, no entanto, tem outros benefícios para a Tools for Humanity e seus investidores. O crescimento no número de pessoas que utilizam a moeda worldcoin pode gerar valorização da moeda no longo prazo, assim como ocorre com o bitcoin. Assim, embora não seja possível saber quantas unidades de worldcoin existem, 25% delas já estão reservadas para os investidores do projeto.

Banalização do uso de dados pessoais

Orb, a câmera que registra imagem de alta resolução da da íris dos usuários Foto: Leo Souza/Estadão

Para especialistas em dados pessoais e privacidade escutados pelo Estadão, faltam especificações por parte da empresa sobre como exatamente funciona o seu processo em relação aos dados sensíveis e quais são as garantias de segurança. Para poderem consentir com o fornecimento de seus dados pessoais, os usuários do aplicativo devem, de fato, entender para quê.

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“Esse tipo de problema, de finalidade e transparência, é o mais comum acontecer nesses casos. A pessoa não sabe por quê ela está dando aquela autorização”, afirma Rafhael Camargo, sócio do escritório Camargo e Vieira Advogados e especialista em proteção de dados e privacidade.

Nos termos do aplicativo, o usuário pode optar por “compartilhar os dados da sua íris com a World”. “Isso significa que você escolhe enviar esses dados para que possamos usá-los para aprimorar o nosso sistema. Os dados nunca serão explorados ou monetizados no processo”, diz a empresa em um folheto informativo, sem especificar que tipo de uso pode ser feito neste caso.

Além disso, a oferta de um potencial retorno financeiro a partir do fornecimento dos dados, apesar de não ser ilegal, não é bem-vista, já que tende a interferir na autonomia de escolha do usuário, conferindo maior vulnerabilidade a pessoas pobres, pretas e pardas.

“Isso é muito grave, porque nós não podemos permitir essa mercantilização dos direitos fundamentais, como a proteção de dados sensíveis e à privacidade”, diz Johanna Monangreda, pesquisadora da área de assimetrias e poder da Data Privacy Brasil.

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Camargo pontua, no entanto, que se for comprovado que os dados são anonimizados pela plataforma, o processo de World ID não entra no escopo da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Por isso é necessário aguardar a análise da ANPD.

Mulher faz imagem da íris na zona norte de São Paulo Foto: Leo Souza/Estadão

Eles concordam, mesmo assim, que o fenômeno de pessoas fornecendo sua biometria sem saber exatamente para quê só está acontecendo hoje em São Paulo porque há anos existe uma banalização do uso de dados pessoais no Brasil.

“Esta empresa está há quando tempo já operando no Brasil e só agora a ANDP está fazendo o processo de fiscalização? Isso também é um problema, sobre a capacidade de ação da autoridade de dados no Brasil”, diz Johanna.

Tão específico quanto o escaneamento de íris é o das impressões digitais, que atualmente são amplamente utilizadas no Brasil como método de identificação em academias de ginásticas, por exemplo. O reconhecimento facial já é usado também em edifícios, que exigem fotos para realização do cadastro e liberação de catracas ou portões.

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“Que garantia você tem de que aquela empresa não vai fornecer esses dados para outras empresas ou pessoas? E que seguranças elas utilizam contra vazamentos?”, enfatiza Johanna. “Será que eu só posso fazer essa autenticação por meio de reconhecimento facial e impressões digitais? Ou talvez com um cartão QR Code, que eu possa ter acesso?”, pontua Camargo.

A ANPD diz que “tem monitorado o crescente uso das tecnologias de captura de dados biométricos como ferramenta para resolver questões de identificação, para que seu uso esteja alinhado à proteção de direitos fundamentais e às normas de proteção de dados pessoais”.

Em outros países, a Tool for Humanity enfrentou problemas. Em julho do ano passado, a Fundação World, que desenvolve o protocolo de todo o ecossistema, foi multada pela província de Buenos Aires, Argentina, ao equivalente a R$ 1,1 milhão por supostas cláusulas abusivas - o governo local demonstrou preocupação em relação à gestão e segurança dos dados. Autoridades de França e Alemanha anunciaram investigações sobre as práticas de coleta de dados da Tools for Humanity. Em 2023, o Quênia ordenou que a Tools for Humanity parasse de realizar as capturas, citando uma “falta de clareza” em seu tratamento de informações sensíveis. O projeto também foi investigado em Hong Kong e na Espanha.

A Tools for Humanity diz que 10,5 milhões de pessoas nos 39 países onde opera já “venderam” seus olhos para a empresa.

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Folheto da World expõe opção de compartilhamento dos dados biométricos com a empresa. Foto: Giovanna Castro/Estadão

Quais os riscos?

De acordo com o estudo da ANPD “Radar tecnológico: biometria e reconhecimento facial”, os riscos do fornecimento de dados pessoais são:

  • Uso para finalidades que não foram inicialmente informadas;
  • Coleta de outros dados pessoais sem ciência ou consentimento do titular;
  • Efeitos discriminatórios decorrentes de vieses sociais e culturais, atingindo especialmente pessoas de grupos vulneráveis;
  • Exposição a situações vexatórias por erros em tecnologias como a de reconhecimento facial, identificando erroneamente pessoas como criminosas, por exemplo;
  • Vazamento dos dados por conta de sistemas mal protegidos e uso para atividades criminosas.

Para evitar problemas, a ANPD recomenda ler atentamente o termo de uso e a política de privacidade, informar-se sobre a reputação da empresa ou entidade responsável e avaliar a real necessidade da coleta de seus dados biométricos para o serviço oferecido e se existem alternativas menos invasivas disponíveis.

“Compartilhe os dados apenas se identificar uma finalidade clara, com garantias adequadas para a proteção dessas informações e o exercício de seus direitos”, diz a autoridade.

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“Dados biométricos são identificações únicas e permanentes. Por isso, ao contrário de outros mecanismos de identificação, como senhas e cartões de acesso, não podem ser facilmente trocados ou apagados em casos de uso indevido, vazamento ou fraude.”