Um homem branco e robusto com uma causa nobre, às vezes problemático, mas que supera as adversidades e vence seus desafios dando uma lição de moralidade ao final da história. Esse é o estereótipo do herói das narrativas que permearam a cultura nas últimas décadas, seja na literatura, no cinema ou nos games.
Felizmente, isso está mudando e, se ainda deve demorar um pouco até que a transformação seja completa, ao menos guia a indústria dos games em seus primeiros passos na direção do amadurecimento. É assim que pensa Neil Druckmann, diretor criativo da Naughty Dog e um dos produtores de The Last of Us, segundo uma entrevista concedida ao site GamesIndustry International.
Druckmann, com quem já conversamos aqui no blog, disse que o modo como as histórias são contadas está evoluindo. Seja pelos avanços da tecnologia, que permitiram a construção de personagens mais humanos tanto física quanto psicologicamente, ou pelo próprio modo de pensar dos roteiristas, produtores e animadores, que passaram a deixar estereótipos de lado e começaram a "abrir a cabeça" para novas ideias. Além de diversificar os produtos oferecidos a quem joga, os próprios jogadores passaram a pensar diferente, como se puxador por essa mudança de comportamento.
"Conforme mais e mais exemplos aparecem, acho que as pessoas estão atrás de narrativas melhores. E acredito que a crítica dos jogos e as narrativas estão ficando mais sofisticadas. Acho que antes, havia muita dificuldade de falar em estereótipos e como as mulheres são representadas nos jogos, ou como personagens de cor são representados. Agora estou interessado pela discussão e pelo tipo de crítica que os games recebem", disse ele. "Quem não se engajar nessa discussão, quem não dialogar com esses novos públicos que estão aparecendo, vai ficar para trás", defende.
A tendência, continua Druckmann, é que isso faça a indústria evoluir. Mesmo que demore a acontecer, uma vez há muitos custos envolvidos, e por isso há muita cautela por parte dos investidores, essa abertura será benéfica.
"As pessoas sentem que precisam de opções seguras porque há muitas partes de uma corporação gigante trabalhando em uma escala global para lançar um título que eles não querem que assuma riscos. Mas uma vez vez que você tem evidências o bastante para poder dizer 'Olha, isso não é um risco, isso pode ser um sucesso comercial', aí a criatividade pode florescer e novas avenidas podem ser abertas", conclui.
Druckmann refere-se claramente à pouca flexibilidade da indústria para fugir de estereótipos, algo que rendeu casos interessantes como a história da publicação de Remember Me e motivou o trabalho de Anita Sarkessian no Feminist Frequency. Ele afirma que exemplos incríveis podem ser tirados dos games independentes, que encontram novos e inventivos modos de contar histórias porque não ficam amarrados a padrões estabelecidos por executivos de nível superior que tomam as decisões a respeito dos jogos. Os desenvolvedores independentes simplesmente experimentam e assumem riscos e, não à toa, frequentemente são aplaudidos pelos belos trabalhos que desenvolvem.
Isso vai muito além de questões quanto a gênero, raça, cor e outros vários aspectos relativos aos personagens, mas não cabe entrar nessa discussão, ao menos neste momento. É importante, porém, perceber que, de fato, a indústria começou a se abrir e, consequentemente, a amadurecer. Lenta e gradualmente, mas está acontecendo.
Pode parecer clichê, mas é exatamente o mesmo processo percebido na sociedade como um todo - presa a certos padrões e costumes, incerta quanto as mudanças e, por vezes, intolerante, mas caminhando para o amadurecimento e à aceitação do que é chamado de "diferente" e de "diversidade", mas que é, na realidade, normal.
Ter figuras como Druckmann, que teve um papel preponderante no desenvolvimento de um produto respeitadíssimo por crítica e público como The Last of Us, defendendo esse tipo de comportamento é essencial para essa evolução. Como ele mesmo disse, todos têm a ganhar com esse debate, pois o público já começou a amadurecer, e a indústria, para não ficar atrás, precisa acompanhar.
Fonte: Gamespot
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