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A economia delinquente

Governo está saturado de informações sobre a violência no campo e instrumentos para apontar os autores. Por que não os usa?

Por José de Souza Martins
Atualização:

As mortes violentas ocorridas no sudeste do Pará, de duas vítimas-alvo e de uma possível testemunha, e a ocorrida em Rondônia, de trabalhador sobrevivente do massacre de Corumbiara, de 1995, por serem mortes previstas e uma delas informada ao governo e anunciada publicamente pela própria vítima, surpreenderam pela surpresa que causaram. Surpresa que se confirma na improvisação notória da criação, pela Presidência da República, de um comitê interministerial de trabalho para analisar o caso. A hora de analisar já passou faz tempo. Ou o governo tem uma política para a questão da violência no campo ou não a tem. Há anos a Pastoral da Terra entrega ao governo listas de ameaçados de morte, pedindo prevenção, e a lista dos já mortos de morte prevista, como fez agora, pedindo apuração, processo e justiça. Um governo saturado de informações sobre a violência no campo e saturado de órgãos e funcionários supostamente dedicados à apuração e à prevenção de ocorrências desse tipo está muito aquém do que dele se tem o direito de esperar se não sabe o que fazer. Sobretudo quando, em face de fato grave e alarmante, só tem a dizer à nação que criou um comitê de ministros para analisar os fatos. Os fatos vêm sendo analisados há décadas, já sabemos tudo que é necessário saber sobre eles. Dúzias de livros, relatórios e análises foram publicados, até com o patrocínio do poder público. O governo tem instrumentos sofisticados para identificar áreas problemáticas e potencialmente conflituosas, apurar causas e identificar autores. Por que não os usa? A questão ambiental e a questão fundiária decorrem da economia delinquente, clandestina e paralela da grilagem de terras e do desmatamento irregular, que têm sido marca de nossa história desde que a Lei de Terras, de 1850, no Império, criou a propriedade fundiária absoluta e privou o Estado do direito de domínio sobre as terras do País. Privou-se o governo do principal recurso para gestão do uso do território entregando aos particulares o arbítrio e a decisão sobre bens naturais que dizem respeito ao nosso futuro, ao bem-estar do povo e à própria segurança nacional. A República agravou o problema transferindo aos Estados, redutos das oligarquias retrógradas e seus interesses políticos e territoriais, a gestão das terras devolutas. A reação militar à decorrente desrrepublicanização da República, nas revoltas tenentistas dos anos 20 e na Revolução de Outubro de 1930, desencadeou um movimento de recuperação do domínio do Estado nacional sobre as terras da nação. Inicialmente, com o Código de Águas, que nacionalizou o subsolo e relativizou o direito de propriedade e, de certo modo, estabeleceu o direito do Estado à gestão e uso do território. Era, também, o caminho para a eventualidade da reforma agrária, corretiva do uso abusivo, especulativo e improdutivo das terras do País. O golpe de 1964, motivado nas ruas pela resistência à possibilidade da reforma agrária, janguista e de esquerda, produziu o efeito bumerangue de uma legislação e de uma política de reforma agrária, em nome das razões de Estado e da própria segurança nacional. Um passo importante na recuperação do domínio do Estado sobre o território brasileiro. A última medida tendente a incrementar essa política de recuperação da soberania do Estado sobre o território ocorreu no governo FHC, quando o ministro Raul Jungmann determinou a nulidade de supostos títulos de propriedade destituídos de legitimidade, correspondentes a milhões de hectares de terras possuídas ilegal e irregularmente.A violência divulgada nestes dias não diz respeito unicamente a questões relativas a direitos sociais, o direito à terra por parte de quem nela trabalha, e a direitos humanos, o direito à vida e à segurança pessoal e da família. Diz também respeito à questão da segurança nacional. A economia delinquente e paralela, ilegal, tem se apropriado de porções do território, criado enclaves territoriais, estabelecido governos invisíveis, instituído polícias privadas, abolido a lei e os códigos, violado a Constituição. Como se vê no caso noticiado de um "condomínio" em 170 mil hectares de terras invadidas, que pertencem à União, em Rondônia, para extração irregular de madeira e cobrança de direitos de passagem a caminhões que transportam a madeira. Um país dentro do País. A violência contra trabalhadores indefesos do sudeste do Pará e de outras regiões é feita em nome de uma potência privada e oculta, que não paga impostos e não respeita a lei. Situa-se, portanto, na categoria de "inimigo interno", injustamente aplicada a inocentes brasileiros não faz muito e aplicável muito mais a mandantes e autores da violência atual. Na prática, uma guerra foi declarada contra o Brasil por esse inimigo interno, em nome de interesses econômicos e territoriais que não são os do País nem dos verdadeiros empresários. JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR DE FRONTEIRA (CONTEXTO)

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