A sociedade dos poetas solidários

No sábado à noite, na galeria b_arco, a poesia 'incatalogável' de Roberto Piva incendiou São Paulo, num encontro memorável

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Por Jotabê Medeiros
Atualização:

ATRAÇÕES - Gris Mate (Espanha), criado por Iñaki Rikarte a partir da foto de um homem apontando uma seta para céu, e Tom Pain (México), de Will Eno, cujo cenário é um cubo de gelo

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Como se estivessem em 1955, em plena Fillmore Street, na lendária Six Gallery de São Francisco (ocasião tida como nascimento do movimento beatnik nos Estados Unidos), os poetas, músicos e escritores de São Paulo sacudiram qualquer possibilidade de pasmaceira na noite paulistana de sábado. Mais de duas dezenas de autores se reuniram na galeria b_arco, nos baixos da Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, para render tributo a um expoente da literatura brasileira, Roberto Piva, de 73 anos.

Vinho e conhaque na calçada, rock psicodélico com o trio do citarista Alberto Marsicano, blues urbanos na voz rascante de Edvaldo Santana, o Tom Waits de São Miguel, apitos e gaitas. Na plateia, mais de 300 pessoas, de aspirantes a literatos a honoráveis figuras acadêmicas, como o ensaísta e tradutor Boris Schnaiderman e Jerusa Pires, especialista em Literatura e Semiótica, e coordenadora do Centro da Oralidade da PUC/SP.

"Tenho um interesse enorme pela obra do Piva. Quando li Paranoia (1963), fiquei tocada pela força transgressiva dos versos. É poeta que poucos são. Tem muitos por aí, mas poucos são", disse ela. "Admiro a força e a intensidade do texto dele, a vitalidade que transmite em sua poesia", afirmou Schnaiderman.

O sarau visava levantar fundos para custear o tratamento de saúde de Roberto Piva, que sofre do Mal de Parkinson e se submeteu a uma angioplastia recentemente (também fará uma cirurgia de próstata nos próximos dias). As editoras Globo, Azougue e o Instituto Moreira Salles cederam as obras do autor para que a venda fosse revertida para o tratamento.

Fiel ao estilo do poeta, que é um debochado e tem um cáustico senso de humor, a noitada foi regada a gargalhadas e muitos "causos" relacionados ao artista. Celso Borges contou que, às vésperas de uma cirurgia, Piva chamou seu médico e disse: "Essa medicina está falida, o importante é a medicina holística." Alberto Marsicano doou para "leilão" um tênis All Star usado - e quentinho, ele tinha acabado de tirar do pé. E o poeta Joca Reiners Terron lembrou da excitação que sentiu, há 15 anos, ao descobrir que Piva era seu vizinho no bairro de Santa Cecília.

"Eu o vi andando pelas ruas, olhando para lá e cá. Eu estava acompanhado de uma pessoa muito cínica e sarcástica, e que hoje é minha ex-mulher", declarou Terron, arrancando gargalhadas. Terron disse que, na época, mesmo já familiarizado com a literatura beat, surpreendeu-se ao notar que a obra de Piva continha uma originalidade e força expressiva que não era comum em nenhuma tradição.

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Ademir Assunção, que coordenou o evento, revelou que, após lançar uma ação para que amigos e admiradores depositassem algum dinheiro em conta bancária para o poeta (que não tem plano de saúde) , alguém depositou R$ 1 mil. Ao saber do fato, Piva chamou Assunção e disse: "Ademir, descobre quem foi e pede para depositar de dois em dois meses!"

"Viva Piva! Viva a Sociedade dos Fígados Mortos e dos poetas mais ou menos vivos!", bradou o cronista, ator, comentarista e santista roxo Xico Sá (que declamou o texto A Máquina de Matar o Tempo). O poeta Roberto Bicelli dedicou o poema Os Anjos de Sodoma ao cantor, compositor e pianista Johnny Alf, pioneiro da bossa que morreu na semana passada. Frederico Barbosa leu Visão de São Paulo à Noite ("Há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo.")

O dramaturgo Mário Bortolotto, que levou três tiros na Praça Roosevelt em dezembro, fez a sua reentré nos palcos. Acompanhado do gaitista Flavio Vajman, declamou o poema Boletim do Mundo Mágico. Marcelino Freire leu Biografia. Celso Borges leu O Menino Curandeiro. Lourenço Mutarelli, colaborador do Estado, leu Espinheira Santa. Fábio Weintraub contou a história da mais conhecida foto de Piva: caminhando descalço pela estrada, em Jarinu, carregando os sapatos (a fotografia é de Mário Rui Feliciano).

Claudio Willer foi o mais aplaudido, com Relatório Para Ninguém Fingir que Esqueceu, um dos manifestos mais bonitos da poesia brasileira ("Pão para os vivos, papel para os vivos!"). O lendário editor Toninho Mendes, da revista Chiclete com Banana, amigo de juventude de Piva, reapareceu e leu O Século 20 Me Dará Razão. "Piva é imortal e nós estamos contribuindo para que ele seja imorrível", disse Roberto Bicelli. Em cifrões, o saldo da noitada pode ter sido modesto (ainda não havia um balanço ontem), mas foi um grande pileque espiritual coletivo.

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