A trajetória de um jornalista liberal

Chega hoje à Livraria Cultura livro do diplomata Roberto Aldo Salone sobre Julio de Mesquita Filho

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Por José Maria Mayrink
Atualização:

A figura de Julio de Mesquita Filho é o tema de Irredutivelmente Liberal: Política e Cultura na Trajetória de Julio de Mesquita Filho (Albatroz Editora, R$ 59, 480 págs., à venda a partir de hoje, somente na Livraria Cultura). Trata-se da edição em livro da tese de mestrado em diplomacia defendida no Instituto Rio Branco pelo diplomata Roberto Aldo Salone, de 32 anos. Nos últimos dois anos, o autor pesquisou livros, jornais e revistas e ouviu, simultaneamente, pessoas que conviveram com Julio de Mesquita Filho, para traçar o seu perfil e mostrar a luta de seu jornal, O Estado de S. Paulo, contra as arbitrariedades de governos ditatoriais. Com prefácio do professor Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, e uma introdução de Ruy Mesquita Filho, neto de Julio de Mesquita Filho e editor do livro, Irredutivelmente Liberal faz uma análise crítica da atuação do diretor do Estado à frente do jornal, de 1927 a 1969. Durante esse período, ele lutou contra a ditadura de Getúlio Vargas e, mais tarde, contra o regime militar de 1964. Tanto Celso Lafer como Ruy Mesquita Filho exaltam as convicções liberais de Julio de Mesquita Filho, que, fiel à sua visão de Brasil, dedicou suas forças à construção de um ideal, ao custo de grandes dificuldades para sua empresa e sua família.Exilado duas vezes, a primeira depois de lutar na Revolução Constitucionalista de 1932 e a segunda após o golpe do Estado Novo, de 1937, Julio de Mesquita Filho foi, entre os dois exílios, o coordenador da fundação da Universidade de São Paulo. Rompeu com a Revolução de 1964, que havia apoiado, ao perceber que os generais não iam restaurar a democracia. Amargurado com a publicação do Ato Institucional nº 5, parou de escrever editoriais, em 13 de dezembro de 1968, sete meses antes de morrer. A seguir, Salone fala sobre o jornalista. Por que, sendo diplomata, escolheu a figura de Julio de Mesquita Filho como tema de sua uma tese de mestrado no Instituto Rio Branco?Escolhi esse tema por se coadunar com o mundo da cultura e com o jornalismo. Sempre tive grande interesse pela história de O Estado de S.Paulo. Não saberia dizer quando isso nasceu, mas com certeza se consolidou a partir da entrevista que fiz com Ruy Mesquita em 1998. Foi uma entrevista muito esclarecedora. Após a publicação do texto na revista do Centro Acadêmico XI de Agosto (da Faculdade de Direito da USP), constatei que estudantes de minha geração não tinham conhecimento de quem foi esse jornalista, Julio de Mesquita Filho. Seu estudo trata do jornalista e do jornal. Foi sua intenção mostrar as duas histórias intercaladas? Julio de Mesquita Filho entrou na Redação em 1915, para dirigir o Estadinho (versão vespertina do Estado). Foi para ele um período de aprendizado até 1921, quando o Estadinho deixou de circular. A partir daí, como secretário de Redação, foi o terceiro na hierarquia do Estado - eram Julio Mesquita, pai dele, Nestor Pestana e ele. Tinha posição de certo comando. Tornou-se praticamente o Estado. Ficou mais de 40 anos na direção do jornal, de 1927 a 1969, incluindo dois períodos de exílio. Para Julio de Mesquita Filho, o jornal foi um instrumento de política. Não via o jornal como negócio. Sempre teve em vista que o jornal era uma unidade de combate. Jamais usou-o para qualquer fim que não fosse o aperfeiçoamento das instituições políticas brasileiras. Isso fica claro na tentativa de venda do jornal. Isso ocorreu após a ocupação do Estado pela ditadura, em 1940?Foi uma tentativa forçada. Julio de Mesquita Filho chega a brigar com a família para impedir a venda do jornal. Os irmãos são obrigados a vender o jornal. Francisco Mesquita vende as ações sob protesto. Por causa disso, na devolução do Estado, com o fim da ditadura em 1945, Julio Filho permite que Francisco volte com ele. A história do jornal é a história dele. O tipo de jornalismo que imprimiu mantém uma coerência constante ao longo das décadas em que esteve à frente de tudo. É uma coerência que herdou do pai, Julio Mesquita. Ele admirava a figura do pai, uma pessoa que defendeu a República e os ideais republicanos. Daí a decepção com os rumos que tomou a República, principalmente após a política dos governadores.Citando Julio Mesquita, Julio Filho dizia não entender como o pai, sendo homem tão inteligente, foi defender a República. É uma frase que expressa a decepção com os destinos da República. Julio de Mesquita Filho tinha grande apreço pela monarquia e especialmente pelo Segundo Reinado. Ele demonstra isso várias vezes. No grande livro dele, Ensaios Sul-Americanos, delimita um Brasil monárquico, com regime estável, instituições que funcionavam relativamente bem, embora num país escravocrata. Julio de Mesquita Filho foi também político, embora não se tenha filiado a partido algum. Como o senhor avalia a militância que ele teve?O início da militância na política se dá com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, em 1919. Nessa campanha, ele vê o perigo de estarmos submetidos a um partido único, como eram o Partido Republicano Paulista (PRP) e seus homólogos estaduais. Ele se bate pela reforma das instituições, tanto na Campanha Civilista como na Liga Nacionalista, que pugnava pelo voto secreto, já desde 1910. Após a Liga Nacionalista, ele teria grande atuação no Partido Democrático, que apoiou, em 1930, a Aliança Liberal, de Getúlio Vargas. Só por ignorância se pode achar que Julio de Mesquita Filho era um reacionário que estava do lado dos conservadores do PRP. Na realidade, ele sempre esteve na oposição. Achava que Getúlio Vargas pudesse ser esperança de renovação na política. Como o senhor analisa o papel dos Mesquita e do jornal na Revolução Constitucionalista?Julio de Mesquita Filho foi o articulador de 32, unindo adversários históricos. A Revolução de 32 teve o apoio dos liberais gaúchos, mas na última hora a aliança foi abortada. São Paulo ficou sozinho. Tem-se de afastar a ideia de que 32 foi um retorno dos perrepistas que queriam a República Velha. Depois, que foi uma revolução de caráter separatista. Julio de Mesquita Filho voltou do exílio em 1933. Quando Armando de Salles Oliveira foi nomeado interventor, ele se dedicou ao projeto de fundação da USP. Era um projeto que vinha acalentando desde os anos 20, quando pediu a Fernando de Azevedo para fazer o Inquérito sobre a Instrução Pública. Julio de Mesquita Filho foi contraditório em algumas questões, como se afirma em seu livro?Ele foi muito coerente em suas posições, mas possuía resquícios de um patriarcalismo e era um grande conhecedor do evolucionismo social de Spencer. Essa teoria dizia que havia uma evolução de certos segmentos da humanidade, o que podia gerar algum preconceito, por exemplo, contra negros. Mas não era pessoal. Ele defendia posições que hoje poderiam soar como racismo. Era contraditório, pois sabia muito bem que havia descendentes de negros no seu jornal, no entanto manteve uma visão antropologicamente anacrônica. Havia o preconceito contra imigrantes. Mas deu um cargo para o (italiano) Giannino Carta, que foi o responsável pela seção internacional. E fez o mesmo com Claudio Abramo, que, além de ascendência italiana, tinha ascendência judaica. O livro Ensaios Sul-americanos, em sua opinião o escrito mais importante de Julio de Mesquita Filho, reflete a experiência dele no exílio? Em Buenos Aires, Julio de Mesquita Filho conviveu com a família Paz e com a família Mitre, donas respectivamente dos jornais La Prensa e La Nación. Sabia o que era uma tradição liberal. Ele pegou o final da República liberal argentina e logo depois viu como essa tradição foi subvertida pelo peronismo, que reputava tão deletério para as instituições como foi o getulismo no Brasil. Nesse livro, Julio de Mesquita Filho defende a ideia de que o Império do Brasil foi pacifista e refuta as afirmações segundo as quais o País teria investido numa ação expansionista no continente sul-americano. Como foi a luta que empreendeu contra Getúlio Vargas?Getúlio foi o grande adversário de Julio de Mesquita Filho. Ele combatia Getúlio porque considerava o getulismo muito mais deletério que o comunismo. E não só o Getúlio, mas todo o grupo que ele pôs no poder e toda a configuração política que teve tempo de formar depois de 1945. Para Julio Filho, o varguismo institucionalizou a corrupção. Daí o combate não só à figura de Getúlio Vargas, mas também a seus seguidores, entre os quais João Goulart. Contra João Goulart, em 1964, foi mais uma vez conspirador. Julio de Mesquita Filho acreditava que as Forças Armadas tinham um papel moderador. Estava longe de ser um militarista, pois ele e o pai nunca foram a favor de quarteladas, como se vê no episódio de 1924. Admitia um período de exceção de, no máximo, dois ou três anos, para em seguida se retomar a normalidade. Não queria uma ditadura. Mas discordou de Carlos Lacerda, quando este advertiu que, se assumissem o poder, os militares não o deixariam tão cedo.Foi um erro. Ele não sabia que os militares haviam-se convencido, desde o movimento tenentista da década de 1920, de que os civis eram absolutamente ineptos e corruptos para o exercício da coisa pública. Segundo essa concepção, que dominava a caserna havia muito tempo, caberia aos militares a salvação da República. Julio de Mesquita Filho viu, com grande arrependimento, a modificação do movimento do qual participou em 1964. Já estava amargurado logo depois de 1964. Com essa decepção, começa a mais desabrida oposição do Estado à ditadura, a um regime autoritário cujo desfecho foi o AI-5. O jornal foi censurado antes mesmo da decretação do AI-5.

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