A viúva do torturador

Mulher do tenente-coronel Paulo Malhães conta como era a vida no sítio em Nova Iguaçu onde vivia o militar que confessou crimes da ditadura

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Por Clarissa Thomé
Atualização:

RIO- Com a mensagem seca de um dos assaltantes, a dona de casa Cristina Batista Malhães soube que estava encerrada a relação de 27 anos com o tenente-coronel reformado do Exército Paulo Malhães. “Seu marido já está morto”, disse o homem. O casal havia sido dominado por três criminosos quatro horas antes. Cristina estava amarrada, passara a tarde sofrendo ameaças, já havia implorado por sua vida. Exaurida, não conseguiu sequer chorar. Os homens ainda permaneceram outras cinco horas ali. Esperavam a rua esvaziar para deixar o sítio com as armas da coleção do militar, poucas joias, aparelhos eletrônicos. Tentaram usar o Golf de Malhães: bateram com o carro num dos coqueiros do sítio e quase caíram com o veículo num poço ao darem uma desajeitada marcha à ré. Fugiram a pé, deixando objetos roubados pelo caminho, e foram resgatados mais adiante por um comparsa.

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Cristina chegou àquele sítio, no bairro da Marapicu, Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, aos 13 anos. O pai, trabalhador rural, havia sido empregado por Malhães para cuidar da horta e fazer a capina. A mãe sugeriu que a menina se oferecesse para trabalhar como babá do caçula dos cinco filhos do militar, um menino de 2 anos.

Malhães era conhecido na vizinhança pelos modos violentos e fama de matador. Nada se sabia de seu passado como agente do Centro de Informações do Exército (CIE), articulador da Casa da Morte, centro clandestino de tortura mantido pela ditadura na Região Serrana, e militar atuante nas mais importantes operações do CIE, entre elas a repressão à Guerrilha do Araguaia.

Cristina foi contratada e pedida “em namoro” por Malhães pouco tempo depois. Ele tinha 50 anos e estava casado pela quarta vez. Comprou a casa dos fundos para os encontros amorosos às escondidas. Cristina levou bronca da mãe: ouviu que o militar não ficava muito tempo com as mulheres, que seria mais uma na vida dele, que a diferença de idade era grande. “Eu brigava com ele por causa da mulher. Um dia ele disse: ‘Eu vou largar ela pra viver com você. Vou acabar meu relacionamento quando você tiver 15 anos’. Eu não acreditei. Mas foi o que ele fez.”

Cristina mudou-se para o sítio em 1989. Continuou os estudos em escola particular. A família dela ganhou de Malhães geladeira e televisão – até então não tinham esses eletrodomésticos. O preço parece alto: não podia andar sozinha, nem tampouco ficar no sítio sem o marido. O coronel não viajava. Não gostava de sair.

“Fui me acostumando a viver a vida dele. Eu não tinha ressentimento por isso. Logo no começo foi difícil, porque eu queria ir aos lugares. E ele não deixava eu sair sozinha, não. A gente brigava. Depois fui me acostumando, me acostumando, me acostumei. Já não me aborrecia mais”, conta.

Cristina descreve o marido como homem amoroso, mas também “cheio de manias”: não se deixava fotografar, não gostava de esperar a mulher se arrumar para saírem, era metódico com a organização de seus documentos. Diz que ele foi “agressivo” uma vez com ela. “Mas no dia eu também exagerei. A gente tinha discutido e eu fui desaforada. Ele achou que dando um tapa na minha cara ia me consertar. Eu não reagi. Disse que aquilo só ia piorar. Mas nunca tive medo dele. Ele me amava, dizia que eu era a única pessoa da vida dele, ele não ia querer me fazer mal.”

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Em 2000, Malhães se candidatou a vereador pelo PDT, numa coligação batizada ironicamente de Frente Democrática, que incluía PCdoB e PV. A vida social foi mais intensa, com comícios, churrascos. Por essa época, os filhos ainda frequentavam a casa do pai. As fotos mostram o sítio movimentado, a piscina cheia. Depois veio o afastamento. “Por questões de dinheiro”, Cristina desconversa. Malhães também passou a ter muito ciúme de seu filho caçula em relação à mulher quando o rapaz cresceu.

Casaram-se no civil em 2005, sem festa. Ela vestia azul, ele havia pintado a barba e os cabelos para disfarçar a diferença de 37 anos entre os noivos. Apenas duas testemunhas viram a união ser oficializada, o padrinho e a irmã de Cristina.Malhães sempre se manteve afastado dos colegas de farda. Ressentiu-se da reforma precoce aos 48 anos, no início do governo de José Sarney, depois de amargar sete meses “na função mais burocrática do mundo”, como disse ao Estado em março: diretor do Serviço de Inativos e Pensionistas, na 6ª Região Militar, na Bahia.

O homem que confessou ter torturado e matado sem remorsos durante a ditadura dedicou-se à criação de cães das raças dog alemão e fila brasileiro, e de periquito padrão inglês, cujos preços chegavam a US$ 500. Atualmente, seu hobby era o cultivo de orquídeas. Também trabalhou como consultor de segurança em empresa de ônibus e se aproximou do banqueiro do jogo do bicho Aniz Abrahão David, o Anísio.

Com o passar dos anos, o sítio movimentado ganhou ares de local desabitado. Há um estábulo desativado, onde Malhães manteve alguns cavalos no passado. O mato alto toma conta do terreno que cerca a casa e uma porteira precária não impede a entrada de ninguém. A ampliação do imóvel para o segundo andar não foi concluída.

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Na varanda, como na área de serviço, há muita quinquilharia, sacos de ração abertos, móveis gastos, uma luneta. O interior da casa é mobiliado com simplicidade e o emboço da sala, pintada de azul-escuro, caiu em alguns pontos. Uma mesa está tomada por dezenas de caixas de medicamentos. Muitos eram para a coluna, Cristina explica. Há um ano, Malhães foi pular um riacho que corta a propriedade e caiu. No dia seguinte, já não andava. Tentou “macumba e fisioterapia”, sem sucesso. Passou a frequentar um “enfiador de agulhas”, que lhe trouxe algum alívio. Há três meses, começou a andar por curtas distâncias com ajuda de um andador, que Cristina comprou.

Foi nessas condições que fez as declarações desencontradas sobre o paradeiro do corpo do deputado Rubens Paiva – ora disse que foi jogado no mar, ora que foi lançado num rio em Petrópolis. Falou primeiro em casa, em dois depoimentos que chegaram a quase 14 horas ao jornalista Marcelo Auler e à advogada Nadine Borges, integrantes da Comissão Estadual da Verdade. Nas duas ocasiões, não se levantou sequer para ir ao banheiro.

Também deu entrevistas aos jornais O Globo e O Dia. Recusou-se a comparecer para prestar depoimento no Ministério Público Federal. Por fim, falou em audiência da Comissão Nacional da Verdade (CNV), à qual chegou em cadeira de rodas. Fez duas exigências: não queria a presença de militantes de esquerda nem parentes de desaparecidos do regime militar; e concordou com a presença de repórteres, desde que não fizessem perguntas.

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Nem a mulher nem os filhos entenderam por que ele decidiu falar. “Não sabíamos de nada e ficamos surpresos. Dissemos a ele que não devia ter falado, tanto tempo depois, ainda mais sem nos preparar. Nunca entendemos por quê. Sempre foi uma pessoa muito reservada, muito difícil. Não era de conversar”, afirmou a médica Karla Malhães no dia em que soube da morte do pai. Na infância, ela desconhecia as atividades do coronel.

Quanto a Cristina, ela soube “do envolvimento dele na ditadura” bem depois da união. “Só fiquei chocada quando ele foi prestar o depoimento na Comissão Nacional da Verdade e disse que cortava os dedos, quebrava os dentes (para evitar a identificação dos corpos). Aquilo eu fiquei meio chocada. Eu sabia o que ele fazia, as torturas e as mortes. Os detalhamentos, não.”

Ao Estado, Malhães disse que resolveu abrir o paradeiro de Rubens Paiva e assumir ter se livrado do corpo “por causa de um grande amigo que estava envolvido”. “Mas depois eu vi que não podia assumir muito porque não participei de muita coisa do Rubens Paiva”, disse, para explicar as contradições entre depoimentos. Apesar das declarações de que havia queimado os registros de suas atividades no CIE, a Polícia Federal apreendeu computadores, mídias digitais, agendas e documentos que seriam da época da ditadura militar, inclusive relatórios de operações, na última segunda-feira. O material estava numa casa pré-fabricada, vizinha ao sítio. A ação foi autorizada pela Justiça, a pedido do MPF.

Nos dias seguintes ao depoimento à CNV, Malhães dispensou dois funcionários que cuidavam do sítio. Abria, assim, caminho para a volta do caseiro Rogério Pires, que trabalhara ali por sete anos. À polícia, Rogério disse que já vinha tramando com os irmãos o assalto ao sítio de Malhães duas semanas antes de reassumir o antigo posto.

A saúde do militar vinha piorando. Por duas vezes Cristina socorreu o marido com crises de hipertensão – a última delas, em março, o encontrou caído no corredor. Uma medicação sublingual regularizou a pressão arterial, que estava em 18 x 12. Ele também sofria de arritmia cardíaca.

O aniversário de 77 anos, em 17 de abril, passou em branco, com o bolo comprado pela mulher guardado na geladeira. Ela foi mordida por um fila batizado Negão, que aparecera no sítio. Para Malhães, o cão feroz havia sido enviado por Omolu, entidade do candomblé. Ficou com o animal, contrariando Cristina. Dois dias depois, o coronel foi atacado. O cão apoiou as patas no seu peito, jogando-o contra a parede, e abocanhou seus dois braços. O bolo só foi partido na segunda-feira, 21.

Na quinta-feira, 24, o casal voltava do posto de saúde, onde tomou a vacina antirrábica, quando foi surpreendido pelos dois irmãos do caseiro – e mais um homem, encapuzado, cuja identidade não foi revelada pela polícia – dentro da residência. Usaram uma pistola e um revólver 38 do próprio Malhães para rendê-lo. Quatro horas depois, o coronel estava morto. Para a polícia, a morte foi acidental: o coração não resistiu. Mas o presidente da Comissão Estadual da Verdade, Wadih Damous, ainda não está convencido da versão de que a houve crime comum e pede a entrada da Polícia Federal no caso.

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Cristina não desconfiou do caseiro. Na segunda-feira, 28, ambos foram levados à Delegacia de Homicídios da Baixada, às 16 horas. Os dois fariam o reconhecimento dos suspeitos por foto, mas o que se seguiu foi uma espécie de acareação. Cristina conta que ficou estupefata quando soube que os suspeitos eram irmãos de Rogério.

“Vem cá. Você está dizendo que os caras que entraram lá em casa eram teus irmãos? Eram? Por que você não disse isso no primeiro dia, quando a polícia chegou lá? Você disse pra polícia que você não conhecia. Ele respondeu assim: ‘Só vim a reconhecer quando eu vi a fotografia’. Calei a boca e fiquei quieta. Ele disse: ‘Tenho quatro irmãos que querem me foder’. Eu respondi: ‘Por causa dos seus irmãos, perdi o meu marido. E eles querem te foder? Você está achando que vai colocar o rabinho deles e deixar o seu de fora? Você está redondamente enganado. Você vai entrar junto com eles’. Falei mesmo. Dentro da delegacia.” Ao meio-dia de terça-feira, Cristina foi liberada, “sem lanche, jantar, ou café da manhã”. “Passei só no cafezinho preto.”

Cristina não se conforma pelo fato de o marido ter sido vencido pelo próprio coração. “Eu vou dizer para você: se o Paulo pegasse os três, nenhum deles saía daqui de dentro vivo. O que mais me revolta é isso: os caras entrarem desarmados e fazerem uma sacanagem dessas que eles fizeram comigo e com meu marido, com as armas do meu próprio marido.” Aos 40 anos, Cristina se prepara para deixar de vez o sítio. Vai ter de aprender a viver uma vida só sua.

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