Ainda sobre a reforma

Aqui um camarada com coluna em jornal, Marcel Berlins, que geralmente trata de assuntos jurídicos, tirou a toga, vestiu a camisa 9 do time de futebol da várzea, e resolveu passar três colunas elogiando a reforma ortográfica do português.

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Por Ivan Lessa
Atualização:

Aqui um camarada com coluna em jornal, Marcel Berlins, que geralmente trata de assuntos jurídicos, tirou a toga, vestiu a camisa 9 do time de futebol da várzea, e resolveu passar três colunas elogiando a reforma ortográfica do português. Sim, é verdade. Língua que, quero crer, ele não manja nem sequer a letra de "Três Travestis", de Caetano Veloso, recentemente pelo compositor e intérprete redescoberta e reincorporada ao seu repertório (vide mais adiante). Não é só em futebol que os ingleses estão por fora. Logo no título, Berlins entrega a bola ao beque adversário: diz que é necessário escrever a língua inglesa tal como é pronunciada. Só assim, prossegue, na imensa e cansativa manchete, as crianças poderão aprender a soletrar corretamente. Como é que as crianças têm feito até agora, "seu" Berlins, é que pergunto. Inclusive Ian McKewan e Saul Bellow? Mais besteira só mesmo tirando o trema da lingüiça. No meio do caminho, Marcel Berlins esbarra numa pedra, feito nosso poetastátua à beiramar (hífen é os tinflas, confere?) plantado, e berra que "no futuro a família mundial de fala portuguesa, composta de 230 milhões de pessoas, poderá falar, ou ao menos escrever, com uma só voz." Marcel Berlins não entende nada de portugueses, timorenses, sãotomeprincipescos e brasileiros do Oiapoque ao Chuí. Primeiro, ele acha que somos alfabetizados. Segundo, crê na possibilidade de não urrarmos invariavelmente todos ao mesmo tempo. Pobre coitado. No meio de suas miseráveis considerações, no entanto, ele me lembra uma gracinha que o sacana do George Bernard Shaw, sempre devidamente acompanhado de seu groupies, inventou só para impressionar as senhoras de meia-idade presentes ao sarau literário que freqüentava aos sábados. Shaw, malandro que só ele, propôs um alfabeto complicadíssimo, praticamente impossível de se aprender. Foi talvez mais longe do que os senhores lexicógrafos, homens de negócios e deputados portugueses e brasileiros conseguiram ir. Com a diferença que Shaw pretendia simplificar e instigar ao invés de burrificar sem sentido. Por exemplo: Shaw era favorável à eliminação de todos os Ps não pronunciados no início das palavras. Eles, as gentes da língua de Shakespeare, não pronunciam o P de psicólogo e pseudo, ao contrário de nós, que insistimos no "pissicólogo" e no "pisseudo". No que fazemos muito bem. Língua a gente deve dar uma olhada e nela tentar sentir suas origens. Há um orixá etimológico dentro de todos nós, razoavelmente informados, pedindo para baixar no cavalos que somos. Por esse motivo, os franceses deixaram aquele desmando de acentos graves, agudos e circunflexos, sempre nos lugares menos esperados, só para fazer o cidadão sentir uma cutucada de um caboclo latino ou grego, pedindo charuto, pinga e lugar no terreiro. Um exemplo que todo mundo deve conhecer, e que Shaw não se cansava de mostrar num quadronegro (vá fá, hífen!) durante o chá "seudo" literário: "ghoti". Shaw pegava do giz e escrevia a palavra perguntando, com seu melhor ar malandro, de professor Higgins em Pigmalião, o que é que ela significava. Pasmo geral entre damas e cavalheiros presentes na platéia. Shaw então, sempre de giz na mão, elucidava: - Pronuncia-se fish (peixe). "Gh" como em "laugh" (rir). "O" como em "women" (mulheres) e "ti" como em "motion" (moção). E, pimpão, ficava cofiando bigode e barbinha, enquanto os distintos senhores e senhoras da distinta audiência, soltavam um "Oh!" coletivo de surpresa e espanto, para logo em seguida aplaudir o "bruxo de Dublin", conforme o chamavam, para ódio de GBS. Além do mais, detestava também o Bernard do nome. (Incrível, mas Shaw bobeou. Poderia ter acrescentado um S no final de "ghoti" e aí explicar que era mudo.) Tudo em vão. Tal como acordo ortográfico em Trás-os-Montes (ah, ai ficam valendo os hífens, né? Manjo) e Pindamonhangaba, bruxo de Dublin e Bernard foram incorporados à sua história e patrimônio. Sem falar que não deu um bom dinheiro às editoras e neodicionaristas. Três travestis (letra completa) Em homenagem a Marcel Berlins, todos os reformistas ortográficos brasileiros e portugueses, além dos inúmeros seguidores de Caetano Veloso, aí vai a letra da música quase perdida. "Três travestis/Caçam perfis/Na praça/Lápis e giz/Boca e nariz/Fumaça/Fotos de Liz/Drops de aniz/Cachaça/Péssima atriz/Chão, salto e triz/Trapaça/Quem é que diz/Quem é feliz/Quem faça/A codorniz/O chamariz/A caça/Três travestis/Três colibris de raça/Deixam o país/E enchem Paris de graça" Pensando bem: mandem brasa no acordo, que nós merecemos. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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