Análise - A economia política da proposta de ajuste fiscal

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Por Marcos Fernandes G da Silva
Atualização:

As análises sobre o primeiro pacote fiscal do governo Temer apontam para uma mesma direção. Em primeiro lugar, trata-se mais de uma carta de intenções, que precisa de maior detalhamento. Em segundo lugar, é algo que implica mudanças constitucionais e negociação política de monta. Gostaria, contudo, nesta análise, de ir além do que já foi adiantado, explicado e discutido. Há certo consenso de que o pacote de medidas é bem-vindo, virtuoso e necessário, dada a destruição do pilar fiscal feita pela política econômica da presidente, no momento afastada, Dilma Rousseff. Mas ele vai além do curto prazo, da tentativa de se resolver um problema de conjuntura: já se emitem sinais de uma proposta de ajuste estrutural e, mais além, de uma proposta de novo modelo econômico e de políticas sociais para o País. Há desafios e riscos, mas a ideia implícita de desvinculação de gastos e de teto máximo para o aumento da despesa da União implica mudanças que têm impacto sobre a economia política do gasto público e sobre a democracia. Sobre democracia - bom que se afirme - se essa mudança se consumar, será positiva. Esta é a tese que procurarei defender aqui, para além das análises meramente macroeconômicas e, de certo, já desenvolvidas dentro de certo consenso entre economistas, elas e eles, de respeito e competência reconhecida entre pares. Mas antes, vamos a um resumo das medidas: (i) Fundo Soberano: O governo informa que há R$ 2 bilhões reservados no Fundo Soberano, e que eles podem ser usados para amortizar a dívida pública. A rigor, o valor é irrisório, mas não há por que não se utilizar todas as fontes de recursos para tentar amenizar a derrama fiscal. (ii)  Limite para gastos e possíveis desvinculações: O governo irá propor ao Congresso emenda constitucional para um teto de crescimento dos gastos do governo. (iii) Governança das estatais: O governo considera importante investir na votação de propostas que já estão no Congresso Nacional, tais como a Lei de Responsabilidade das Estatais, que busca maior insulamento da gestão das empresas em questão da interferência política. (iv)  Fim da participação obrigatória da Petrobrás em todos os projetos do pré-sal. Embora a lei sobre estatais seja oportuna e a proposta sobre o pré-sal também, a que mais interessa, do ponto de vista da crise fiscal do Estado brasileiro, é a do teto de gastos e desvinculação. A Reforma da Previdência também é importante do ponto de vista do ajuste, mas não é meu foco aqui. Alguma desconfiança - não sem razão -já começa a surgir sobre o que se esboça como o início de uma mudança do pacto social consubstanciado na Constituição de 1988 e na construção real do Estado de bem-estar social nela proposto. E isto feito por um governo provisório que pode, quando muito, ser de transição. Se a esquerda desconfia e sustenta que está a se propor uma mudança das políticas concebidas lá, devo reconhecer que ela está certa. E é por isso que as mudanças são bem-vindas, com o perdão à provocação. De fato, a proposta de desvinculação pode ser perigosa, já que sempre que ajustes fiscais eram feitos, nos anos 80 e durante a ditadura, a área social pagava boa parte da conta. Os mais fracos, grupos de interesse difusos, ficam mais expostos a esses processos. Quando se pensou na vinculação de gastos, a ideia era exatamente impedir tais procedimentos. Contudo, para todo benefício há um custo. E, ao que parece, no Brasil de hoje, os custos das vinculações são maiores que os benefícios. O mesmo se aplica à indexação de determinados gastos sociais ao salário mínimo, como no caso da Previdência. O Brasil de hoje é diferente do Brasil de 1988. Aparentemente ainda não houve compreensão adequada do que ocorreu em 2013. Muito além de ser, com efeito, um movimento difuso e confuso, havia um denominador comum às várias demandas, por mais conflitantes que fossem: melhoria da qualidade do serviço público. A democracia exige ação pública, mobilização na defesa dos direitos e participação popular, organizada na forma de grupos de interesse que, quanto mais difusos são, melhor. Chamo isso de o paradoxo da ação coletiva. Explico: grupo de interesse difuso parece ser uma contradição nos termos. Quando pensamos em teoria da ação coletiva, lembramos de Mancur Olson, em seu clássico livro em open acess agora (todo mundo deve ler): grupos de direito difuso não têm capacidade, por custos de transação ou variedade abstrata de interesses, de se organizar. Consumidores, por exemplo, são um grupo difuso: envolvem várias classes sociais, grupos, etc. Por isso que, advoga-se, para esses grupos devem haver proteções. Por outro lado, grupos com pequeno número de indivíduos, pessoas jurídicas, associações sindicais, etc, têm capacidade de superar a latência de interesses em comum e fazer pressão em defesa de seus interesses. Há um porém nesta questão quando pensamos em cidadãos como consumidores de serviços públicos. Por mais difuso que seja este grupo, os cidadãos devem, por dever moral, lutar por seus direitos nas cidades, nos bairros, no voto, pela provisão adequada em qualidade e quantidade de serviços públicos. Isso reforça a democracia, tirando o cidadão de sua zona de conforto. Mas haveria um ponto fraco em meu argumento. No Brasil, em geral, aqueles que dependem do serviço público seriam os mais desprotegidos, sem poder, pobre e sem voz. Ora, seria inadequado, hoje em dia, supor que as pessoas são tão precarizadas assim. E que sejam, que votem. Se votam em quem não provê, que revejam suas ações. Que o voto doa, cause sofrimento. A vinculação é cômoda pois tira do cidadão o dever de lutar e, por outro lado, cria a sensação de que quantidade é qualidade, legitimando discursos políticos populistas, repletos de propostas irrealistas e ineficazes, como alocar 10% do Orçamento em Educação. Verbas desvinculadas levariam o político a se explicar por que toma as decisões que toma. Exemplo: a abuso do gasto público causado indiretamente pela bolsa empresário, fosse outro o cenário, sem vinculação, deveria gerar certa indignação ao eleitor, principalmente de baixa renda, devido ao fato de que ajustes deveriam ser feitos em Saúde e Educação para financiar os ricos. Nosso Estado financia os ricos de todas as formas, com universidades públicas gratuitas, com subsídios aos capitalistas, com compressão do FGTS, com imposto inflacionário decorrente de desajustes fiscais, com contribuições e impostos indiretos regressivos. Aliás, por falar em imposto inflacionário, impor um teto aos gastos não é somente medida de emergência: deve ser estrutural. Isto pois temos que - e isso vale para as desvinculações de Saúde e Educação - lidar com a qualidade, eficácia e eficiência das políticas públicas. A mera vinculação cria ilusão de que mais é melhor. A evidência empírica vai na direção contrária. Portanto, do ponto de vista da economia política do ajuste proposto, caminhamos sim na direção certa. Contudo, precisamos de total transparência para mostrar quanto custa o Judiciário e quais benefícios ele gera - a evidência aponta para profunda ineficiência do Judiciários em todas as suas esferas. Precisamos saber quanto custam os alunos das Federais, e fazer análises de desempenho em função dos custos das universidades, dos salários pagos, da falta de meritocracia. Estes são exemplos de que a tarefa é dura - e este tema de outro artigo, pois amplo o é: vamos esbarrar no corporativismo rentista, e aí a conversa é mais difícil. Entretanto, se mostrarmos para a sociedade quanto ganham fulanos e sicranos, como a qualidade dos serviços públicos poderia melhorar, como poderia ser a gestão e outros aspectos, será a pressão popular que constrangerá políticos a limitarem os privilégios do Estado brasileiro, dos donos do poder, pequenos e grandes. Reconstruir instituições fiscais não é somente política macroeconômica de curto e longo prazo: é desenvolvimento da democracia, limitação do uso de instituições extrativas.* Marcos Fernandes G da Silva, pesquisador associado de políticas públicas (CEPESP/FGV), professor de microeconomia, ética e governo (FGV/EAESP e Escola de Direito de São Paulo da FGV) e economista da Fundação Getulio Vargas marcos.fernandes@fgv.br