Análise - Impeachment: clamor social e fundamento constitucional

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

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Por Gustavo Rabay Guerra
Atualização:

A República assistiu, ao raiar do sol desse dia 12 de maio de 2016, a histórica votação, no Senado Federal, do afastamento temporário da presidente Dilma Rousseff, determinando-se, assim, o processamento da investigação para apurar a ocorrência de crime de responsabilidade praticado pela suprema mandatária, sob pena de impedimento constitucional, com a consequente destituição da função, na forma do que preconiza a Constituição Federal e a Lei 1.079, de 1950. O processo sob julgamento é fruto de denúncia formulada pelos juristas Hélio Bicudo, fundador dissidente do PT, Miguel Reale, ex-ministro da Justiça, e Janaína Paschoal, professora da USP. Para chegar até essa fase, houve o cumprimento de processo formal de admissibilidade na Câmara dos Deputados, com tumultuada votação em Plenário, no qual foi aprovado, por 2/3 dos membros da Casa, o Relatório da Comissão Especial de Impeachment, procedimento seguido de forma análoga no Senado, com acachapante 55 votos favoráveis ao processo contra apenas 22 contrários. O principal aspecto que distingue o Relatório da Comissão Especial do Senado foi a qualidade técnica alcançada pelo senador Antônio Anastasia (PSDB), que detém formação jurídica sólida. O parecer em destaque aplacou controvérsias acerca da presença de elementos caracterizadores da suposta fraude fiscal cometida pela presidente afastada, que consubstanciou a acusação de crime de responsabilidade, mitigando os esforços da base governista que acusa todo o episódio de conspiração contra a democracia. Ocorre que a democracia é um conceito ambíguo, "é uma técnica do poder - uma entre outras", como afirmou o pensador italiano Giorgio Agamben em entrevista às vésperas da eleição para o parlamento europeu em 2014. E o argumento de defesa da presidente não logrou desarmar as severas e consistentes indicações de que o seu governo cometeu desvios de extrema gravidade. Se há algo de democrático nisso tudo, é o próprio processo de impeachment. Desde a derrocada da máxima absolutista "The king can't do no wrong", o regente fica permanentemente sujeito ao julgamento político da nação ou restaria o descontrole e desequilíbrio daquele que ostenta o poder ilimitado. Mesmo que consideremos que esse mecanismo deixa o presidente vulnerável de certa forma, pois são quase 60 hipóteses de incidência de crimes de responsabilidade e muitas delas remetem a outras situações. Aí cabe o papel do intérprete, que pode ou não se levar por argumentos de ordem política e não eminentemente jurídica. Como esse intérprete é o parlamento, a própria fórmula democrática plantada no regime constitucional brasileiro permite esse julgamento permeado pela moralidade política. Em recentes decisões, o STF declarou inexistir possibilidade de interferência do Judiciário nesse mérito político do Congresso e, sobretudo, não há que se exigir imparcialidade dos parlamentares, pois esses são julgadores isentos da imparcialidade que rege o Judiciário, pois não são magistrados técnicos, tampouco essa é sua função precípua. Importante registrar, por fim, que o debate sobre a legalidade e legitimidade democrática do impeachment é revisitado após 23 anos do afastamento do ex-presidente Fernando Collor. Naquela precoce etapa de nossa democracia reconstituída, havia grande receio de que o processo afetasse a estabilidade institucional. Passadas essas décadas históricas, assistimos a diversas crises econômicas, uma revisão constitucional e excessivas reformas do Texto Maior (já são 91 emendas convencionais). Sobrevivemos dentro da normalidade possível. Tudo dentro dos limites da democracia e, agora, com transmissão ao vivo e monitoramento permanente das mídias digitais. Mesmo diante de todas as manifestações de grupos radicais contrários ao impeachment, o cenário é mais sereno. Iniciado o rito do processo, temos que nutrir a esperança de que, independentemente do desfecho, ele consiga eliminar incertezas que hoje alijam o presente e o futuro do Brasil. E, sobretudo, com o anunciado governo Temer, seja transitório ou de sucessão, que o mesmo projete reformas necessárias na legislação eleitoral, anticorrupção e, sobretudo, na cultura política nacional.

* Gustavo Rabay Guerra é advogado e professor, doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB