Análise - Não vai ter golpe

Análise publicada originalmente no Estadão Noite É possível até que aconteça um impeachment, o que, por definição, é muito ruim. Um bom impeachment seria o equivalente a uma cirurgia traumática bem-sucedida: o melhor desfecho para o pior cenário. De um jeito ou de outro, porém, a boa notícia é que não vai ter golpe. É ruim que se utilize o discurso de ruptura institucional ou de demonização genérica para deslegitimar de antemão o resultado com o qual não se concorda, sinal de mais apreço pela conjuntura do que pelas instituições. Não há condições para um golpe. A imprensa é livre, as redes sociais fervilham com manifestações de todos os matizes e as ruas estão abertas para acolher todo tipo de ato público. As Forças Armadas, em postura exemplar, não interferem nem para emitir opinião. Nas sessões da Câmara e do Senado, os parlamentares falam o que querem e até protagonizam momentos de incontinência institucional, com direito a palavrões e anúncios jocosos de que o japonês da Federal estaria a caminho. Nunca se ouviu falar de um golpe em que os protagonistas, de ambos os lados, tivessem tanta liberdade e desinibição para atuar. Até os interesses e ambições pessoais estão expostos - da ânsia por escapar da própria degola à disputa por mais poder, nesse ou num eventual novo governo.  Do outro lado da praça, o Supremo Tribunal Federal sinaliza que o atropelo procedimental não será uma opção. Agiu assim pela caneta dos ministros Teori Zavascki e Rosa Weber - ao desautorizar o presidente da Câmara a fixar procedimentos alternativos ou complementares aos que são previstos na Lei nº 1.079/50 -, e agora por decisão do ministro Luiz Edson Fachin, ao suspender a instalação da comissão especial até que o STF analise a regularidade dos procedimentos. A mensagem é clara e não poderia estar mais correta: o tempo da política somente poderá ser veloz se houver clareza e previsibilidade nos ritos. Impeachment não é hora de ousadias hermenêuticas, muito menos em matéria de procedimento.  A cassação de um presidente deveria ser aquela possibilidade distante, quase simbólica, cuja mera existência serviria de freio indutor de todas as cautelas. Algo deu errado para que a democracia brasileira tenha chegado, novamente e em tão pouco tempo, a esse ponto de inflexão. Mas seria um erro extrair desse fato empírico, por si só, a conclusão de que haveria um golpe em curso ou de que a presidente deva ser necessariamente afastada. Antes de fechar incondicionalmente com uma das torcidas, parece mais sensato investigar se o problema de fundo não seria a forma como a política é conduzida pelos políticos e fiscalizada pela sociedade no Brasil. Inclusive neste momento crítico. O Orçamento, por exemplo, deveria ser o espelho da direção política que se está imprimindo e se planeja imprimir no País, mas a opinião pública só lembra dele quando as sirenes já estão soando. Ainda agora, quando se discute um processo de impeachment por alegadas irregularidades orçamentárias, as lideranças do governo e da oposição ainda não vieram a público explicar, didaticamente, as suas versões dos fatos. Não as suas divergências políticas abrangentes, mas os fatos específicos em discussão. Os fatos como ponto de partida, e não como coadjuvantes ou trampolins na realização dos respectivos projetos de poder. O tema das finanças públicas é árido, mas não chega a ser ininteligível. O governo deixou de contabilizar dívidas para disfarçar a real situação financeira do País? Houve adiamento deliberado e prolongado de pagamentos ou meros desequilíbrios pontuais, resultantes do fluxo normal das operações? Os períodos de atraso eram, por alguma razão, determinantes para alterar o diagnóstico produzido pelos mecanismos periódicos de acompanhamento das finanças públicas? Retardar pagamentos, em padrão semelhante, era uma praxe generalizada em todos os governos? O déficit era a única forma de preservar programas sociais relevantes, ou havia outras despesas passíveis de corte? E, no final, caso reste positiva a verificação das imputações: seriam elas suficientes para caracterizar a ocorrência de violação à lei orçamentária ou de algum outro crime de responsabilidade? Ou seriam apenas práticas inadequadas, insuscetíveis de configurar afronta à Constituição?  É essa clareza que o povo, exausto, espera da classe política. Mais do que argumentos vagos e frases de efeito. A partir daí, pode-se defender que um presidente só deveria cair por corrupção pessoal ou por outra ilegalidade chapada, como determinar despesas sem dotação orçamentária formal. Por outro lado, pode-se defender que a peneira do impeachment deve ter furos um pouco mais largos, permitindo afastar mandatários que hajam descurado, por exemplo, do dever de preservar a exatidão material do orçamento público.  Essas são formas diferentes de interpretar e aplicar o instrumento atípico previsto na Constituição, que deu aos parlamentares a atribuição de julgar e afastar um presidente eleito por violações graves à própria ordem constitucional, detalhadas na lei. Pretender-se portador de uma verdade jurídica única sobre a régua do impeachment - fora da qual só haveria o golpe ou a conivência - não deixa de ser um cacoete autoritário, mesmo que exercido, de boa-fé, em nome da democracia. A resposta há de ser construída coletivamente, no Congresso e no debate público, sob o monitoramento procedimental do STF.  Quando importantes lideranças políticas e intelectuais tentam desautorizar esse debate antes mesmo que ele comece e substituí-lo por sua resposta pronta, num sentido ou no outro, a sensação é de que a crise de confiança jamais se resolverá. No máximo, vai se diluir em mais desalento e indiferença. Isso se não resultar em um governo tão inviabilizado quanto antes, velho ou novo. A tentativa de transformar a questão em uma guerra entre o bem e o mal já nasce fracassada quando nenhum dos contendores é percebido, pela sociedade, como verdadeira expressão do bem. Como não deve mesmo ser. As democracias contemporâneas são plurais e não se contentam mais com argumentos de autoridade - jurídica, política ou moral. O caminho há de ser outro, menos grandiloquente e mais respeitoso com a divergência. O afastamento de um presidente sem o suporte de fatos concretos e amplamente compreendidos seria um lembrete amargo de que a instabilidade sempre foi um traço da cultura política nacional, ainda que tenha ficado dormente nos últimos anos. Mesmo que não chegasse a ser propriamente um golpe, seria um atestado de que não somos tão maduros institucionalmente como andamos alardeando por aí. De que o caminho a percorrer é bem mais longo do que parecia antes do descarrilamento. Uma absolvição mal explicada, por sua vez, perpetuaria a sensação de que o País não é sério, de que sempre se pode construir algum acordo mais poderoso do que as regras do jogo. É isso, mais do que qualquer outra coisa, que mina a confiança no País, de dentro e de fora.  E porque ambas as opções deixam de resolver o problema que já está posto - o problema do País que precisa voltar a funcionar -, é racional imaginar que haverá estímulo político para avançar além da mediocridade. Nesse sentido, o trauma pode ser um empurrão para o esforço, inadiável, de reinventar o Brasil em bases mais éticas, transparentes e racionais. A política é uma arena de sobreviventes. Se os destinatários e financiadores da atividade deixam de tolerar o espetáculo, é inexorável que os artistas se empenhem em melhorá-lo. É por isso, também, que se pode confiar que não haverá golpe. Os reis estão nus sob o olhar de um povo cada vez mais cético em relação a tudo que se passa. As autoridades de agora terão de fazer melhor do que têm feito, caso queiram continuar dando as cartas sem sobressaltos. O ceticismo da plateia é o que vai nos salvar. 

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Por Eduardo Mendonça
Atualização:

* Eduardo Mendonça é advogado em Brasília, professor de Direito Constitucional do UniCeub e coordenador-geral do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais

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