Análise - Os ‘Panama Papers’ e a licitude de uma offshore

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

PUBLICIDADE

Por Sylvio César Afonso
Atualização:

O caso ‘Panama Papers’ ganhou grande repercussão mundial e abalou a imagem de várias personalidades, políticos e governantes ao redor do mundo, uma vez que o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) teve acesso a nada mais nada menos que 11,5 milhões de documentos confidenciais do escritório panamenho de advocacia Mossack Fonseca, escritório este especializado em operações envolvendo empresas situadas em paraísos fiscais, as chamadas ‘offshore’.  Tais dados expõem ao mundo uma verdadeira rede de empresas pertencentes a pessoas públicas situadas em países considerados paraísos fiscais - o que coloca em jogo a credibilidade dessas figuras. Entretanto, antes de se fazer qualquer juízo de valoração em relação a idoneidade dessas pessoas, é necessário entender alguns pontos cruciais. Primeiramente, é preciso compreender o que vem a ser uma offshore. Esse tipo de empresa tem como principais características os benefícios fiscais, a menor burocracia para sua constituição e operação, bem como o sigilo das informações destas e de seus sócios. Dessas características, talvez as que mais chamem atenção são a tributação reduzida, bem como o sigilo das informações empresariais, financeiras, bancárias e pessoais dos sócios e diretores das offshore, isto porque, o contrato social da offshore nesses países é considerado como instrumento particular e não é levado a registro público, diferentemente do que ocorre no Brasil.  Ao redor do mundo, vários países oferecem esses tipos de ‘atrativos’ para fazer com que as pessoas se interessem em guardar suas riquezas nesses locais. Desta forma, os países que não possuem tais ‘benesses’, em grande parte combatem veementemente qualquer operação realizada entre empresas situadas nos chamados paraísos fiscais. No Brasil, a Instrução Normativa da Receita Federal nº 1.037/2010 estabelece quais são os países considerados com ‘tributação favorecida’ e assim terão esse tratamento diferenciado quando houver qualquer operação. Vários desses países considerados paraísos fiscais estão situados geograficamente em ilhas. Surge daí também a expressão ‘offshore’ - traduzindo-se para o português quer dizer ‘longe da costa’. Podemos dizer, então, que se tratam apenas, de certas zonas ‘privilegiadas’ que existem em várias partes do globo. Quando falamos em paraísos fiscais, a grande maioria das pessoas é levada a uma ideia errônea do que seja, pois, na realidade, e não sem razão, as notícias estão quase sempre ligadas aos grandes escândalos políticos e empresariais. Porém, fazendo uma análise fria das offshore, percebe-se que são empresas lícitas e legalmente constituídas, apenas fora do limite territorial de suas sedes, ou ainda, fora do domicílio de seus interessados, registradas na melhor forma de direito desses países. No Brasil, apesar de o Fisco tentar inibir a saída de recursos para o exterior, principalmente para paraísos fiscais, este encontra uma vedação expressa na própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XV. A Constituição garante a todos que sujeitam a ela o direito de ir e vir do País com seus bens, o que impede o Fisco ou qualquer outro órgão de impedir a remessa de valores ou bens ao exterior. Entretanto, isso não significa que esses bens possam ser enviados a torto e a direito para fora. Estes devem seguir determinadas regras burocráticas para que as operações se realizem de forma legal e sem nenhum risco. Deste modo, percebe-se que não há qualquer violação à legislação brasileira o fato de a pessoa, seja ela física ou jurídica, possuir valores depositados em contas no exterior, independentemente do país, desde que haja o cumprimento de todas as obrigações impostas pelo governo brasileiro. Contudo, tendo em vista a estrutura legal que norteia as regras dos locais onde estão constituídas essas empresas, nota-se que há um favorecimento notório e patente para que determinadas firmas operem de forma suspeita, principalmente em razão do sigilo das informações. A ideia de ilegalidade existente na imagem formada sobre esse tipo empresarial se dá pelo fato da necessidade de a constituição da offshore normalmente se dar em paraísos fiscais - o que nem sempre ocorre com a finalidade da prática de fraude, lavagem de dinheiro ou qualquer tipo de ilicitude, mas pela possibilidade de diminuição da carga tributária em comparação ao país de origem dos sócios. Do ponto de vista societário e tributário, não há qualquer tipo de irregularidade, uma vez que todos têm direito a constituir e possuir uma empresa, desde que cumpram todos os requisitos estabelecidos em lei. No caso em questão, o que chama atenção não é exatamente esta estrutura, mas sim a origem dos recursos dessas empresas e seus tipos de sócios, já que o que se constatou é que essas empresas, clientes do escritório Mossack Fonseca, tinham como sócios pessoas físicas públicas e, principalmente, pessoas ligadas aos governos de diversos países - o que pode levar grande parte de seus governados a desconfiar da idoneidade destes. Ainda que não tenham obrigação legal de transparência de seu patrimônio pessoal, ao mesmo tempo têm uma obrigação moral com seus governados de não omitir tais informações.  Diante desse cenário, o que se vê normalmente nessas empresas é que elas são utilizadas para fins obscuros e fraudulentos, o que, normalmente, está atrelado a uma operação de natureza ilícita. Ainda, outro fato que chama a atenção nestas revelações da ICIJ é que grandes instituições financeiras ao redor do mundo, normalmente cercadas de todos os altos padrões de governança corporativa, sejam as idealizadoras de grande parte dessas offshore espalhadas pelo mundo. Tal fato não é comum para essas instituições, uma vez que um dos pilares de governança corporativa é justamente a transparência de suas operações, perante seus clientes e acionistas.  As revelações feitas com o vazamento das informações do escritório Mossack Fonseca devem ser analisadas com cuidado, uma vez que é necessário avaliar detalhadamente as contas dessas empresas para poder atestar se elas operavam de modo ilícito ou com recursos de origem criminosa. Tal cautela é necessária.

* Sylvio César Afonso, advogado, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, auditor pelo Ibracon e conselheiro do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.